quarta-feira, 15 de outubro de 2008

não não eu não preciso mais dormir eu sou calígula e incitatus cavalgando em direção a urano eu sou pancho villa stephen dedalus bento de albuquerque santiago raskólnikov afonso henriques de lima barreto rindo de seu próprio fígado no hospício eu sou o personagem omitido o livro não-escrito cortem a cabeça de todos os ídolos deuses e celebridades mergulhem toda essa gente supersticiosa em óleo fervente meu coração está inchado meu coração precisa explodir meu coração é uma bomba de tinta azul é preciso estourar as lâmpadas por pura diversão é preciso morder planetas como se fossem maçãs derreter o corpo é preciso ficar aqui dentro enquanto eles se matam lá fora enquanto eles trocam pâncreas por salários enquanto a nossa dor é anestesiada por raios catódicos é preciso arranhar com chaves de fenda sonhos na parede não é preciso porra nenhuma é preciso um grande cu negro que drene toda a galáxia todas as estrelas como um ralo de pia como o espaço que há entre os seres e entre nossas mentes como um significado que esquecemos mas não se esqueça eu sou uma metáfora a ser decifrada eu eu eu quantos eus sim eu sei e não me desculpo pelo exagero de eus porque afinal não importa se falo de mim de ti de todos nós quem lerá a última linha? quem atirará o primeiro montante de merda? quem ainda precisa de palavras? quem ainda precisa escrever? novos vírus novíssimos meninos cirróticos prontos para o ocaso o acaso o casaco que não nos protege do frio do ponto que nos anula da margem que não pode ser alcançada

cansado do massacre cotidiano saio em busca de contatos telepáticos e flores que possam ser dissolvidas em detergente ou sangue é preciso compensar a falta de luz é preciso exorcizar o mundo da eterna multiplicação do vírus do controle total de cada fração de movimento troca de energia tempo e espaço é preciso desmascarar a coincidência e o acaso é preciso derramar cores nos lagos da imaginação dançar com os fantasmas da infância sonhar com insetos devolver o corpo à terra derrubar ministérios eleger presidentes esquizofrênicos budas mendigos é preciso derrubar hospícios zoológicos farmácias supermercados tribunais delegacias é preciso gerar novos dionísios é preciso avançar no espaço fazer uma ode às coisas simples aos vegetais ao esterco ao ruído dos intestinos cheirar cocaína estudar geografia absorver a umidade dos becos fumar trezentos cigarros o sabor da nicotina calmamente o piano as teclas a cartela de calmante na estante o cérebro congelado a espinha dorsal a infelicidade que não se explica o dia o dia o dia as horas o relógio tudo o que poderia ser dito os policiais na esquina nosso medo nossas medidas é preciso continuar vivo rir do suicídio compreender a doença da filosofia o ridículo o sentido a matemática os logaritmos a heroína é preciso ajudar o cão agonizante a atravessar a ponte.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O surgimento de nossa civilização

Por Hamilton Fernandes

Dia. Interior de Fábrica. Máquinas trabalhando. Barulho Ensurdecedor. Um funcionário explica o funcionamento da máquina ao colega:


– Veja bem, você tem que conferir se o pistão está bem lubrificado. Se tudo estiver funcionando corretamente, aperte este botão vermelho e dê início ao processo...


Corta.


Close. Dedos médicos enluvados manipulam uma vagina. Sons de umidade. (Ouvimos a voz do médico, mas a câmera é fixa na imagem da vagina em close). Entramos no meio da conversa:


– ... Nesta região encontramos as glândulas de Bartholin. Como vocês podem ver, nossa paciente encontra-se completamente seca.... (microfonia de guitarras elétricas – os dedos continuam a vasculhar, apontando pontos vaginais específicos – sinfonia de Haydn – a imagem se esvai...)


Corta.


O lusco-fusco enegrece em quadros acelerados. Ampliação no microscópio de parasitas dos gatos.


Corta.


Interior. Câmera lenta. Açougue.


Ao som de Chopin, homens de botas, roupas e boné brancos carregam pernis bovinos no ombro para dentro de um frigorífico.


Corta.


Praia. Dia nublado. Som direto.

Homens, mulheres e crianças nus usam apenas capacete de motociclista – viseiras negras fechadas.

Vemos um homem de idade avançada (suposta pelos pêlos brancos do corpo) tocando percussão de frente para o mar. A câmera desvia a atenção para moças que passeiam de bicicleta, seios ao vento. Entreolham-se em seus capacetes.

Uma garotinha de capacete amarelo oferece uma bacia de maçãs a um cavalo branco.

Pessoas dão-se as mãos e formam um grande círculo. Uma fanfarra se aproxima. Todos dançam. A música se mistura ao vento, ao rumor do mar.


Pipas coloridas dançam acima das águas. Vêem-se pequenos pontos pretos surgirem no horizonte – a câmera aguarda – helicópteros aproximam-se e homens de avental e máscara médicas descem por cordas – todos na praia paralisam-se e contemplam a morte: uma a um, crianças, homens e mulheres são mortos por rifles, bisturis e injeções letais. Um dos homens de avental, agora manchado de sangue, arranca o capacete de um cadáver – vemos a face uniforme sem boca, nariz, orelhas e cabelo – apenas um enorme olho azul que substitui a cabeça da criatura.


Corta.


Sala de operação. Cirurgiões trabalham concentrados sobre o útero de uma mulher. Retiram um câncer, um teratoma do tamanho de um pequeno melão: dentes cariados, cabelos, unhas e células podres em expansão. Os cirurgiões e enfermeiros reúnem-se ao redor do horrendo corpo estranho.


O enfermeiro dirigindo-se ao cirurgião (em tom submisso e polido):

– Parece continuar crescendo, doutor...

– Sim... e nunca irá parar de crescer!



Imagem: Annie Cavanagh, Wellcome Images