sexta-feira, 27 de maio de 2011

Um pezinho de seis dedos

Havia decidido, e confesso não saber ao certo a origem dessa extravagância, que minha próxima namorada deveria ter seis dedos. Tudo começou pela minha obsessão por pés femininos. Após muitos footjobs, pisadas no saco escrotal por pés de salto alto, e outras tantas bizarrices sexuais que pratiquei com mulheres que conheci na internet, essa ideia brotou em minha mente, linda e fétida, como uma flor de merda: sim, minha próxima namorada deveria ter seis dedos... no pé esquerdo, de preferência.

Não demorou muito até conhecer Tatiana. Foi através de um anúncio estapafúrdio em um site de encontro de casais que tudo começou... Tatiana, devo fazer aqui uma ressalva, era portadora da Síndrome de Down e, como muitos portadores dessa alteração cromossômica, tinha aquilo que os médicos relatam como "libido exarcebada". E claro, seis dedos, mas no pé direito.

Éramos um casal feliz e seu sexto dedinho era uma das coisas mais lindas que Deus já pôs nessa terra. Passava horas acaraciando aquele mindinho retardado, beijava-o, fotografava-o, observava-o com ares de um homem verdadeiramente apaixonado.
Os pais de Tatiana aprovaram logo a relação. Era um casal de velhinhos: a mãe, obesa e profundamente religiosa, dizia que era obra de Deus: o destino, a mão divina havia me colocado no caminho de Tatiana; o pai sofria do mal de Alzheimer e passava os dias sentado em uma poltrona da sala, o olhar vazio mirando o infinito...

Aos domingos íamos ao parque do Ibirapuera, tomávamos sorvete, um lindo casal de namorados, e, ao chegar em casa, eu era obrigado a fodê-la por trás quatro, cinco, seis vezes por dia - era a tal da "libido exarcebada"... Tati era uma figura e tanto. Após alguns beijos, uma troca exagerada de saliva, a língua frenética como um peixe fora d'água, ela simplesmente abaixava a bermudinha tactel e pegava na minha pica como se fosse arrancá-la. Durante certos rompantes de alegria mongoloide, na tentativa de acalmá-la, eu era obrigado a introduzir-lhe dois ou três dedos no ânus. Era uma vidinha feliz a nossa, apesar das emoções extremas da minha "retardadinha" (sim, nós também tínhamos nossos apelidos amorosos).

Não me lembro bem quando as coisas começaram a perder o controle. Provavelmente foi depois que apresentei o paraíso e o inferno das drogas para Tati. Começamos com uns baseadinhos, umas carreirinhas de cocaína aqui e acolá, umas pedrinhas de crack nos fins de semana e, de repente, Tati começou a ter certas atitudes que, a princípio, pareciam apenas extravagâncias de sua síndrome - às vezes, após uma boa foda por trás, ela defecava no lençol da cama, embalava o troço num pedaço de jornal, fazia-o nanar nos braços, "meu filhinho, que bonitinho...", e guardava aquela porcaria dentro da gaveta do armário; em outras ocasiões, louca de crack, aparecia nua na sala com uma abobrinha enfiada no reto e vomitava sobre o velho pai esclerosado - a mãe não lhe repreendia, pensando, de certo, em se tratar dos efeitos colaterais dos medicamentos que ela tomava por causa da síndrome.

Eu não me importava. Tinha aquele sexto dedinho só pra mim, podia acariciá-lo com a cabeça do meu pênis, segurá-lo entre o polegar e o indicador durante o programa Silvio Santos, lustrá-lo com minha própria porra, enfim, eu tinha uma namorada de seis dedos e a amava por isso.

Mas as coisas começaram a passar dos limites. Certa feita, durante um boquete, Tati mordeu minha glande com tal força que fui obrigado a dar-lhe duas ou três cacetadas na cabeça até que livrasse meu pobre membro daquela boca ensandecida - fui hospitalizado com uma hemorragia terrível e, por pouco, não me torno um eunuco.

Uma semana depois, e com quatro pontos cirúrgicos na ponta do cacete, estou sentado à mesa com Tati na praça de alimentação de um shopping. Espero ela terminar seu super Mc Fezes – sorri pra mim, dá gargalhadas, mastiga de boca aberta, enquanto o efeito do pó vagabundo que eu cheirei horas atrás se esvai, e uns pensamentos bem fodidos povoam minha mente em meio aquele ambiente de vitrines, perfumes enjoativos e idiotas andando em círculos.


Fico ali observando os cornos, as dondocas, os adolescentes estupidificados pelos playstations, pela música pop, pornografia digital e sei lá mais o quê, e me vem à mente esse pensamento sinistro que me ocorre com certa frequência: Um dia tudo será destruído. TUDO. O Universo em sua expansão morrerá aos poucos, estrela por estrela, ou retornará ao ponto inicial, segundo as teorias dos bandidos da Física moderna, enfim, tudo será destruído e nós estamos aqui nesse planeta, em pleno século vinte e um, passeando em shoppings, fazendo nossas preces antes de dormir, procriando a espécie, criando obras, e eu me pergunto: pra quê Beethoven, Dante, Michelangelo, tantas paixões, guerras, espaço-naves, tecnologia, exuberância natural, pra quê, se tudo no final se resumirá em pó estelar flutuando num gélido vácuo? Pra quê, porra?


– Vamos fazer umas compras, Tati?


– Peraí, deixo terminar a batatinha.

– Joga fora essa merda, vai! Vamos!

A atendente da loja de calçados femininos dá um sorriso artificial e caminha em nossa direção, lançando um olhar condescendente. Provavelmente pensa em se tratar de um papai e sua filhinha “especial”.

– Posso ajudar?

– Sim, me traga um par daquelas sandálias de salto agulha ali, outro daquele vinil cor de rosa e daquele verde plataforma... Ah, sim, ela tem seis dedos e calça... quanto você calça mesmo, Tati?

– 35

– Senhor, acho que nós não vamos ter esse número para aquele modelo...

– Foda-se. Traga 36 se não tiver...

Tati desfila de um lado para o outro, olhando com satisfação os pés no espelho. Seu sexto dedo reluz na sandália, adquirindo certo ar místico, meu Deus, tudo será destruído, sim, mas esse instante é eterno, caminhe, isso, aproxime-se, deixe-me ajudá-la a calçar esse aqui, isso, dá uma voltinha... estou hipnotizado e com o pau batendo no teto da loja, quando somos interrompidos pela atendente idiota de cinco dedos:

– Ficou muito bem nela! Quer experimentar esse anabela? É novidade... chegou esses dias na loja.

– Sim, sim. Pode trazer e embrulhar os outros, nós vamos levar...

Meia hora depois:

– Senhor, seu cartão deu um probleminha...

– Um probleminha? Você é que tem um probleminha. Olha pro seu pé, essa coisa horrorosa!

– Senhor...

– Cala essa boca e me devolve o cartão! Você devia se envergonhar por ter um pé tão feio, sua filha da puta! Vamos embora, Tati!

(Continua...)



Hamilton Fernandes

quinta-feira, 19 de maio de 2011





O cano gelado da arma , quando alcança minha cabeça, contrasta com o súbito aumento de temperatura no meu corpo, provocado pela adrenalina. O metal desliza pela minha têmpora, como a boca de um pai que beija carinhosamente seu pequeno filho. Eu olho a face do meu executor; eu nunca o vi na vida, mas isso não significa que eu não o reconheça. Em alguma profundidade obscura seu rosto está impresso em uma representação arquetípica. Acho que ele pertence a algum grupo de maravilhas criadas por Deus e não nomeadas a tempo por Adão antes da queda do Éden. Em qualquer momento anterior eu diria que se trata de uma máscara e não um rosto real; uma construção idealizada por algum criador de mitologias. Em qualquer momento anterior, mas não agora. Perto da face dele, é o meu rosto que recebe contornos de uma artificialidade vulgar, tal como um saco de supermercado com um desenho infantil de olhos, nariz e boca. Um olho cego, uma boca muda e sem paladar e um nariz deficiente de olfato. A arma é a mão de Jesus, o corpo pela qual a graça é transmitida pelo homem; enquanto o cano gelado pressiona minha cabeça eu tenho um pequeno vislumbre de tudo o que eu poderia ter sido e das sensações que meu corpo poderia ter experimentado. Por favor, não pense no executor como alguém que irá tirar tudo isso de mim! Ele não está tirando nada, está dando! Em algum ponto da minha história ancestral – graças a ele, agora sei que ando pela terra há tampo tempo quanto a Terra vaga pelo universo – perdi a capacidade de vislumbrar anjos dançando no céu a cada intervalo entre o inalar e o expirar de ar. O barulho da explosão da pólvora soa como um convite carinhoso para que o filho pródigo volte para casa. Mas não posso voltar para casa comprimido e limitado, tenho que voltar como sai: não como um, mas como o todo. Foi muito tempo brincando, muito tempo de faz de conta, muito tempo fingindo. As crianças imitam em uma experiência de enxergar o mundo pelos olhos do imitado. Eu não sou mais criança, já imitei uma....não sou mais adulto, já imitei um...estou cansado de imitar e de fingir, mas até então não havia percebido. Graças a ele, graças ao disparo, lembro da diferença entre ser e pensar ser. O segundo é uma caricatura grosseira do primeiro, pois não se pode ser enquanto seu foco está em pensar ser. O executor sorri e eu sorrio de volta, nunca vi e nem esbocei um sorriso mais sincero, é como se fosse a primeira vez que sorrisse, antes de ter matado o sorriso com um fingir sorrir. Engraçado é que ele vai me matar, mas agora ficaria aterrorizado se ele me deixasse abaixasse a arma e fosse embora. De qualquer forma, não se pode matar o que não vive. Entenda, isso não é uma carta e nem uma apologia ao suicídio, está mais para aquela sensação de liquefação da mente em um tanque de sonhos. De qualquer forma, espero você lá.