quinta-feira, 19 de maio de 2011





O cano gelado da arma , quando alcança minha cabeça, contrasta com o súbito aumento de temperatura no meu corpo, provocado pela adrenalina. O metal desliza pela minha têmpora, como a boca de um pai que beija carinhosamente seu pequeno filho. Eu olho a face do meu executor; eu nunca o vi na vida, mas isso não significa que eu não o reconheça. Em alguma profundidade obscura seu rosto está impresso em uma representação arquetípica. Acho que ele pertence a algum grupo de maravilhas criadas por Deus e não nomeadas a tempo por Adão antes da queda do Éden. Em qualquer momento anterior eu diria que se trata de uma máscara e não um rosto real; uma construção idealizada por algum criador de mitologias. Em qualquer momento anterior, mas não agora. Perto da face dele, é o meu rosto que recebe contornos de uma artificialidade vulgar, tal como um saco de supermercado com um desenho infantil de olhos, nariz e boca. Um olho cego, uma boca muda e sem paladar e um nariz deficiente de olfato. A arma é a mão de Jesus, o corpo pela qual a graça é transmitida pelo homem; enquanto o cano gelado pressiona minha cabeça eu tenho um pequeno vislumbre de tudo o que eu poderia ter sido e das sensações que meu corpo poderia ter experimentado. Por favor, não pense no executor como alguém que irá tirar tudo isso de mim! Ele não está tirando nada, está dando! Em algum ponto da minha história ancestral – graças a ele, agora sei que ando pela terra há tampo tempo quanto a Terra vaga pelo universo – perdi a capacidade de vislumbrar anjos dançando no céu a cada intervalo entre o inalar e o expirar de ar. O barulho da explosão da pólvora soa como um convite carinhoso para que o filho pródigo volte para casa. Mas não posso voltar para casa comprimido e limitado, tenho que voltar como sai: não como um, mas como o todo. Foi muito tempo brincando, muito tempo de faz de conta, muito tempo fingindo. As crianças imitam em uma experiência de enxergar o mundo pelos olhos do imitado. Eu não sou mais criança, já imitei uma....não sou mais adulto, já imitei um...estou cansado de imitar e de fingir, mas até então não havia percebido. Graças a ele, graças ao disparo, lembro da diferença entre ser e pensar ser. O segundo é uma caricatura grosseira do primeiro, pois não se pode ser enquanto seu foco está em pensar ser. O executor sorri e eu sorrio de volta, nunca vi e nem esbocei um sorriso mais sincero, é como se fosse a primeira vez que sorrisse, antes de ter matado o sorriso com um fingir sorrir. Engraçado é que ele vai me matar, mas agora ficaria aterrorizado se ele me deixasse abaixasse a arma e fosse embora. De qualquer forma, não se pode matar o que não vive. Entenda, isso não é uma carta e nem uma apologia ao suicídio, está mais para aquela sensação de liquefação da mente em um tanque de sonhos. De qualquer forma, espero você lá.

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