domingo, 25 de janeiro de 2009

Perspectivas de uma unidade dividida

Quando cedo, Joana foi fazer suas preces, como estava sempre habituada a fazer. Aliás, já nem se lembrava o porque, apenas fazia. Era algo diário, necessário não para um fim, mas necessário para si só. Não poderia se considerar viva, não poderia considerar aquele um novo dia se não as fizesse, não que permanecer no ontem seja muito melhor do que sofrer hoje, mas pelo menos quem sabe a paisagem poderia mudar. Era mais ou menos como ter cocaína para o café da manhã. Palavras se formavam em sua garganta, era preciso pensar para articula-las, porém na verdade ela as dizia justamente para não pensar. O ilógico sempre tinha respostas maiores –ainda que menos sólidas - e sempre se encaixam apesar da latente impossibilidade, mas pro inferno com a lógica e com o racional. “O que há de racional em ter dois filhos para ambos morrerem de fome antes de aprenderem a falar”.
“Venha a nosso vosso reino”
Dia após dia, passo após passo para algum lugar, para qualquer lugar, sem fazer um movimento.Quem disse que é preciso ir para frente para sair do lugar? Ir para baixo sempre foi muito mais fácil.
Joana ainda tentava saber até onde isso iria, sempre teve uma visão da vida como uma história só que agora estava muito difícil decifrar o plot, não havia uma mensagem nem uma moral e apesar do tempo seguir o conto parecia estático como um bloqueio mental do escritor deixando todas as suas cria numa insuportável e infinita repetição.
Sabe o que dizem do inferno? Que é simplesmente repetição.
Enfim, dane-se a falta comida, dane-se os filhos mortos, dane-se seu marido não estar por perto, haviam preces a serem feitas, mesmo sem ter ciência para onde iriam.
O altar era bem simples, feito de forma artesanal com madeira e palha, o enorme crucifixo parecia o centro da casa inteira, era preciso algo realmente grande para conter tanta angustia e desespero, ela se ajoelhou em frente a ele só que dessa vez ele não estava lá.
O crucifixo estava vazio, Joana olhou atônita.Havia uma mensagem deixada “Fui trabalhar”. Joana não conseguia entender, o que faria agora. Repentinamente aquela visão começou a fermentar pensamentos em sua limitada mente, sem ele a peça não parecia assim tão velha, irradiava uma nova forma maleável para si. A melancolia fora embora, o vento depressivo do ambiente parecia cada vez mais fraco, o crucifixo vazio parecia maior e mais claro como uma porta. O desespero começou a formar-se no questionamento de como o tempo passaria daqui para frente, de como as impurezas de ontem ficariam longe de hoje, com o que lavaria seus pecados sem o sangue dele. Porém, ao mesmo tempo percebia inúmeros pensamentos cortando-lhe a mente, isso nunca ocorrera dessa forma, o mundo parecia infinitamente maior e as possibilidades mil, teve medo de que isso logo acabasse e ainda precisava lavar os pecados. Correu até a cozinha pegou a faca e cortou os pulsos, daria conta dos pecados e manteria aquela sensação de promissora para eternidade sem ter de atravessar a nova porta que se abria, estranhou o gosto do novo sangue em sua boca era mais amargo, mais forte mais vivo. Sentiu-se de certa forma autônoma, lampejou em seu cérebro por um décimo de segundo como era ser Deus.
Em um caminhão no meio de uma bifurcação para o fundo da alma dentro da deserta estrada para perfeição, rodando entre dunas espectrais que oferecem a saciação de sua sede em troca do congestionamento deu seu cérebro e atrofiação de suas sensações e atropelando corpos inconstantes demais para alimentar os abutres –estes sim muito reais-, Simão prossegue guiando, com o seguinte dizer no pára-choque“Do que adianta procurar monstros embaixo da cama...já procurou em cima dela?”. Ele precisa chegar antes do por do sol, com seu carregamento: cem fetos não nascidos arrancados cruelmente à mão nua de suas gestantes, em estado criogênico. Caso ele não chegue a tempo com o que aquela pobre gente vai se alimentar? Ódio magoa, ressentimento, medo e morte são elementos básicos em qualquer dieta do mundo.
Sentia-se satisfeito com seu trabalho, sempre chegava em casa feliz e disposto a compartilhar isso com sua única filha.
O deserto da perfeição sempre foi um caminho muito perigoso, mas não poderia lhe ocorrer nada se ficasse trancado dentro de seu caminhão, tinha pena dos cadáveres inconstantes sobre os quais passava por cima, um bando de aventureiros que não sabiam no que se metiam quando decidiram atravessar o deserto expondo-se, e sério alguém tinha que resolver os problemas daquelas dunas surgindo do nada e evaporando-se no ar.
Agora não falta muito, está quase chegando. Mal pode esperar para ver aquele bando de gente faminta abocanhar os fetos e saciarem por pelo menos mais um dia sua fome. Tinha até se questionado um dia porque ao invés de seu patrão distribuir o mínimo de alimento todos os dias, não resolvia de uma vez o problema da fome, mas isso era bobagem. O patrão sempre fora muito bom, e aquele olhar de gratidão indefeso nas faces das pessoas era a prova disso.
Paulo chegou em casa, uma casinha no meio do sertão, feita basicamente de madeira e palha, teve um dia duro, - como sempre - já era confortável se sentir desconfortável sempre se perguntava qual a justificativa para tudo isso.Queria se sentar e comer com sua mulher, mas tudo o que viu foi ela mergulhada em uma poça de sangue e um crucifixo vazio.Pegou os pregos deitou-se e consagrou a si mesmo foi se sentia agora confortável pela primeira vez na vida e tudo se tornou justificado quando os pregos saíram pelo o outro lado de suas mãos e pé, agora finalmente viu um motivo, claro um motivo incompreensível, mas estava lá.

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