quinta-feira, 3 de março de 2011

Necessidade de morte




Todo homem, pelo menos uma vez na vida, devia presenciar e, de certa maneira, sobreviver ao seu próprio funeral. O medo desperto quando esse tema vem à tona revela a imaturidade e a consciência inferior da maioria dos indivíduos civilizados O fato de se resignarem quanto a um braço ou uma perna amputados em prol da saúde do resto do corpo é irrelevante e não demonstra muita sabedoria, visto o afinco com que se apegam a valores putrefatos e corroídos pela mais perniciosa e mal cheirosa gangrena. O tecido podre dessas abstrações têm poderes consideráveis, pois não existiam na natureza antes de serem idealizadas pelos homens, e, portanto, transpuseram o plano de onde são concebidos os erros e penetraram na terra violentando-a. Aceitar perder um membro real de seu corpo e se agarrar a uma ilusão transmutada em divindade revela graves danos neurológicos.

Os pragmáticos e céticos zombam da adoração de vacas na Índia e da meditação em homenagem a água ao mesmo tempo em que se ajoelham, oram e aceitam submissão aos seus deuses do sucesso e fama, nos mais variados e ostensivos templos já vislumbrados no planeta. Geralmente, são torres mais altas do que a de Babel jamais sonhou em ser, e deu seu topo esses fiéis se deliciam provando de iguarias raras e de poderes de mutação da realidade. E a todo momento ligam em tomadas seus artefatos que incessantemente disparam em código numérico os novos mandamentos do inexistente transformado em deus. Essas palavras sagradas são vomitadas de forma aleatória, e ao mesmo tempo seus profetas compram, vendem, roubam, estupram e matam para que os dígitos dessa escritura permaneça infindavelmente alto. Ao que parece, o mercado financeiro é uma divindade extremamente exigente nos tributos prestados sob a forma de sacrifícios.

Essa mitologia, não obstante, é inegavelmente coxa. Diversos são os espaços vazios remanescentes quando é sobreposta ao espírito do homem. Falta-lhe a experiência da queda, e nisso deixa seus arautos despreparados. Apesar de pregar o tempo como linha reta, cujos segmentos anteriores são sumariamente esquecidos, o cair já alcançou essa crença torpe. Em 1929, quando os homens dos altos templos sentiram-se abandonados por seu deus, puseram-se a experimentar a queda, um a um atirando-se dos picos dessas construções, como anjos caídos desprovidos de seu teor transcendental.

Apesar disso, apagaram essa memória traumática e nem ao menos se despuseram a utilizar da suprema dádiva da morte: o subsequente renascimento. Seus dogmas tortuosos e deformados baniram o ciclo e privilegiaram a seta. Cuspiram na face da mãe morte e ignoraram a comunhão que esse espírito materno propunha. Viraram os olhos para a possibilidade de seus corpos se fundirem a raízes, pequenos seres vivos e novamente adentrarem ao ciclo da vida de forma mais harmoniosa. De fato, recusam veementemente a comunhão. Raramente deixam seus pés descalços tocarem a terra e seus dedos sentirem a superfície das árvores. E como prova dessa prepotência, se dispõem a exterminar toda natureza em nome de seu abstrato deus. Trata-se de um culto suicida da maior inconsequência, louvando a anti-vida e a escuridão do nada, a única forma de paz que conhecem.

Todo homem, pelo menos uma vez na vida, devia presenciar e, de certa maneira, sobreviver ao seu próprio funeral. Devem enterrar suas partes podres e contaminadas, se descascar da pele asséptica e das crenças de destruição como objetivo final. Pelo contrário, devem louvar a destruição como primeiro estágio de ação da força criativa. Não devem temer a morte, pois ele é uma mãe caridosa que aperfeiçoa o defeituoso para um novo estágio de virtudes.

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