segunda-feira, 23 de junho de 2008

Acho que acordei meio sentimental...vou assistir um western...

SUBVERSÃO DA DOR


Vô, conta aquela história de novo?”. “Qual, guri?”. “Daquela vez em que você encontrou Deus!”
Ah, essa! Você gosta mesmo dela, né? Bem, foi há uns quatro anos, você ainda tinha alguns meses, sua mãe já havia fugido há algum tempo e seu pai, meu filho, acabara de morrer de overdose de heroína, foi quando eu descobri o envolvimento dele com tráfico. Já não nos falávamos há pelo menos dez anos. Eu te achei e trouxe você para cá. Estava olhando seus movimentos sonolentos no berço e pensando na morte do meu único filho, sem direito a reconciliações ou despedidas. Foi quando eu decidi ir até Deus. Cheguei na frente dele e mal podia encara-lo pela luminosidade sob qual ele se escondia, mas mesmo assim comecei: `Bem, o senhor já deve estar de saco cheio de ouvir `Oh, por que o mundo é tão cruel?´ ou `Se o senhor nos ama, por que coisas horríveis acontecem?´. De qualquer jeito, não é esse o ponto. Não estou aqui para reclamar, estou para explicar, possivelmente ensinar. Posso imaginar a razão da criação, a solidão que é ser quando mais nada é, de nem mesmo saber quem é. Então você tira de dentro si alguma coisa e junta com outra, e voialá! Eis a vida! Mas só observar não é o bastante, todos aqueles lindos anjos planando naquele belo trabalho chamado céu. Aí você arma uma guerra entre eles, para ver quem fica do seu lado. O objetivo é ser amado, mas há um problema, mesmo os caídos te amam, eles nunca tiveram opção. O que seria do inferno se todos ali não sonhassem com o paraíso? Então, surge a idéia: será que uma criatura com a vontade livre como a minha me amaria? Alguém com tamanho poder se daria ao trabalho de amar? Essa é a vez do homem. Mas há uma pequena trapaça, fomos feitos frágeis e mortais, temos medo, não queremos morrer, queremos amor – feito a sua imagem e semelhança, não poderia ser mais verdade. O sofrimento e o medo é o impulso que nos faz te amar e temer. Mas meu amigo, uma coisa, você não deve ter pensado nisso, mas eu sofri como o diabo e percebi que a despeito da dor, nós podemos crescer, melhorar. A vida sem dúvida é um poço de sofrimento, mas as risadas, prazer e a sensação de tornar-se melhor cada vez que a merda cai no ventilador compensa tudo. Vai até além, cria um sentido, um para nós e não mais só para você. Então chefe, o que eu to fazendo aqui é virar a outra face para você! Aprendi isso com o seu filho. Engraçado né? A gente cria tantos planos para a molecada, e aí eles vão lá e fazem tudo ao contrário. Aposto que cristianismo como o de Prhoudon, Tostói e Watchman Nee não estavam no roteiro. Mas tudo bem, porque quando se olha com uma visão menos autoritária, ver aquela vontade livre descendente de si mesmo vivendo, sofrendo e escolhendo, não há nada senão orgulho. Camarada, já assistiu um western? Tipo Clint Eastwood e John Wayne? Resumindo tudo: pode dar o seu melhor tiro parceiro, eu aguento. Não tenho medo de você e nem te odeio, estou mais preocupado em amar e crescer com meus irmãos. Espero um dia poder continuar a conversa...´. Sempre dorme antes do fim, né guri? Tudo bem, eu te amo, vou te amar quando você partir meu coração, isso não será motivo para deixar de faze-lo”


DA EPISTEMOLOGIA DO VAGABUNDO

Os raios do Sol atingem inclemente e indiferentemente na Praça das Bandeiras, os passos rápidos do mendigo em direção à igreja ignoram a sensação da superfície calosa do seu pé queimando ao encontro ao concreto fervendo. Ele precisa encontrar o professor, rápido. Duas coisas o aflige, a mais imediata o fracasso em conseguir comida para o almoço, a outra, uma foto perturbadora encontrada em uma página de jornal antiga.
Para um mendigo, sobretudo um mendigo jovem, é fácil e ágil se locomover por entre a multidão, os caminhos se abrem, as pessoas tentam ao máximo fazer com que ele não exista. Em minutos chegou ao professor, um senhor que já exibia cabelos prateados e um rosto duramente experiente em vida e em dor, sentado em seu posto de mendicância, na escada da igreja. Explicou-lhe aflito a falta de alimento para a refeição do meio-dia.
Ah, garoto! Não se preocupe, o tempo passa, e quando passa mais comida aparece, é só procurar nos lugares certos. Vamos é claro, sentir um pouco de fome, mas sentir é bom, se sentir alegre é bom, se sentir satisfeito é bom, sentir prazer também. Só que quando alguém morre, quando existe dor ou sofrimento as pessoas estão tão ocupadas com pensamentos egoístas que não percebem que a euforia desses sentimentos são a mesma, a euforia de estar vivo de se sentir vivo! Ninguém sente mais, tão preocupados em não sofrer que aceitaram não viver. Existem duas formas de lidar com o sofrimento, ou você se protege dele atrás de muros de produtos, de aço ou madeira, de trabalho, de luxo, que podem te deixar e sumir a qualquer momento, ou trata com ele através da sua mente, uma mente forte que estará com você pelo resto da vida. O grande problema de juntar riquezas a vida toda é expender todo seu tempo em reuni-las, quando te sobrará tão pouco tempo de usa-las, e quando esse tempo chegar, elas não te servem mais. Se tratar como protagonista e capítulo principal da Terra é uma ingenuidade. O planeta está aqui há bilhões de anos, nós a apenas algumas centenas de milhares. Vamos terminar de nos destruir em breve, não seremos uma lembrança maior do que répteis gigantes. Em dez mil anos os rios subirão pelos asfaltos, as árvores romperão o concreto e a Terra será de novo a Terra. Não somos o capítulo principal, somos um pequeno interlúdio. Nos cabe na nossa média de oitenta anos sentir, pensar, experimentar e aproveitar o show. Do que servem seus poucos anos sem nada disso? Então vamos aproveitar um pouco a experiência da fome, garoto!”
Ei, amigo, ei...bom dia, tem um trocado pra nóis comprar comida?”. “Vai trabalhar, velho vagabundo!”
Hehehe...que jornal é esse que você tem aí garoto?”. O jovem mostra uma página datada de vinte anos atrás, com uma foto central de um jovem e vigoroso empresário justificando a demissão em massa de trabalhadores de sua empresa. “Ele parece com você professor. É você?” “Ah garoto, isso é da época em que eu era velho e miserável”.

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