














Seitas e Morte
©1979 William Burroughs
Tradução: Hamilton Fernandes
Eu postulo que a função da arte e de todo pensamento criativo é nos deixar cientes daquilo que conhecemos e não sabemos que conhecemos. Você não consegue contar a alguém algo que ele ainda não saiba. Como aquelas pessoas vivendo na costa marítima na Idade Média, vendo as embarcações chegarem, mastros aparecendo primeiro, ano após ano, e então Galileu os instrui e eles estão prontos para queimá-lo como um intelectual pervertido. Mas eles ficam mais tranqüilos ao longo dos anos e finalmente têm de admitir: “É redonda, rapazes, é redonda. Nós sabíamos o tempo todo”. Cézanne mostrou os objetos ao espectador vistos de certo ângulo, sob uma certa luz e eles atacaram suas telas com guarda-chuvas na primeira exposição. Bem, isso não acontece mais e qualquer criança reconheceria os objetos num quadro de Cézanne. Joyce [James Joyce] fez os leitores ficarem cientes do fluxo de consciência e foi acusado de promulgar um culto à ininteligibilidade.
Se a função da arte é nos tornar cientes do que sabemos e daquilo que não sabemos que sabemos, a função da Igreja Cristã e de toda sua metástase foi e ainda é nos manter na ignorância daquilo que sabemos. Pessoas que viviam no litoral sabiam que a Terra era redonda. Eles acreditaram que era plana porque assim foi dito pela Igreja. E os membros linha-dura da Synanon ainda acreditam que a mídia colocou aquela cascavel na caixa de correio de Paul Morantz para desacreditar a Synanon. Existe algum limite para a lavagem cerebral? Aparentemente não. Cultos como Synanon, a Cientologia, o Peoples Temple [Templo dos Povos] derivam da mesma fonte infectada, como o Cristianismo. De fato, eles recapitulam a história do Cristianismo palavra por palavra, como o inevitável curso de uma doença horrível: ignorância criminosa, estupidez brutal, fanatismo hipócrita e medo paranóico de quem não pertence ao grupo. Para o praticante do culto, psiquiatras, a mídia e agências do Governo tornaram-se a encarnação de Satã. Assim como os cristãos fundamentalistas, eles têm que estar certos.
Mas o Cristianismo soou bem à primeira vista para o convertido ingênuo. Amor, paz e caridade – o que há de errado com isso? Eu direi o que está errado – uma série de horrores sem precedentes perpetrados pelos assim chamados Cristãos: A Inquisição, os Conquistadores, as guerras Indígenas Americanas, a escravidão, Hiroshima e o atual Bible Belt. Aquela religião venenosa dos velhos tempos que eles fomentaram constitui uma ameaça a todos os passageiros da espaçonave Terra. Por que isso aconteceu, e por que acontece com as seitas que se originam do Cristianismo? O que estava errado com o Cristianismo em seu começo? No começo era a palavra e a palavra era Deus.
Existe um livro interessante intitulado The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind [“A Origem da Consciência na Ruptura da Mente Bicameral”]. O autor, Julian Jaynes, postula que o respeito e reverência profundos que os antigos sacerdotes detinham, derivaram de sua habilidade de produzir sua voz nos cérebros dos súditos leais. Esta é a voz de deus, que se afunila através do hemisfério cerebral não-dominante. Jaynes cita evidências clínicas: a estimulação do hemisfério não-dominante fez voluntários ouvirem vozes. Um suicida salvo de afogamento declarou que uma voz em sua cabeça disse a ele para se matar, e que, por alguma razão, ele tinha que obedecer àquela voz. Se você quer começar um culto, o primeiro passo é levar sua voz para dentro do hemisfério não-dominante do cérebro dos seus futuros seguidores. O curso de Cientologia envolve horas de audição da voz Ron Hubbard em fitas cassetes. Dizem que a voz de Dederich, fundador da Synanon, parece sair do sistema de ar condicionado, e o reverendo Jim Jones tinha fitas de sua voz continuamente transmitidas por alto-falantes em Jonestown.
O segundo passo: faça inimigos. Se existe uma coisa de que o líder de um culto precisa são inimigos – reais ou imaginários – dos quais libertar seu rebanho. Tendo postulado inimigos diabólicos, o líder então estabelece pelotões de comando para lidar com a situação crítica inventada: the Sea Org of Scientology, the Imperial Mariners of Synanon [os Marinheiros Imperiais de Synanon], as guardas armadas de Peoples Temple. Atos agressivos cometidos por esses defensores produzem contra-ações de fora. Afinal de contas, o que esperar quando você invade escritórios do Governo, põe cascavéis na caixa de correio das pessoas e assassina um Congressista? Esses contra-ataques levam à paranóia crescente e mais e mais medidas extremas.
Dada a habilidade de projetar sua voz na mente alheia, aqui vai a planta de um projeto:
ACT, the Anti-Cancer Temple [O Templo Anti-Câncer], foi fundado por Tobias Antony Crump, um pastor singular da Igreja Radiante do Cristo Regenerado. Ele alugou um hotel no interior de Nova York onde ofereceu, por um preço razoável, curar pessoas do hábito de fumar em sete dias. A cura se dava por sugestões implantadas na que ele chamou de “a outra mente”. As sugestões eram administradas através de fones de ouvido que seus fregueses eram ordenados a usar dia e noite durante os sete dias de cura. No fim desse período, todos os fregueses renascidos decidiram ficar no Templo e trabalhar para o ACT. Como retribuição pelo privilégio de se tornarem ACTivistas, eles foram obrigados a dar dez por cento de suas posses ao ACT.
Crump prosperou e expandiu suas instalações. Mais e mais pressão era colocada em fregueses curados para permanecerem após terem completado o curso anti-tabagismo. Era dito a eles que a cura ainda não estava completa. Se eles retornassem a suas velhas casas, iriam inevitavelmente recair e morrer de câncer em poucos anos. Além disso, eles tinham o sagrado dever de ajudar os outros. O Câncer, ensinou ele, era uma conspiração Venusiana para tomar o planeta. Alienígenas estavam chegando em tecidos cancerosos como parasitas invisíveis, e estavam invadindo mentes e corpos de todas as posições sociais. O Reverendo Crump publicava um tablóide semanal no qual lançava acusações formais absurdas contra todos os inimigos do ACT, uma lista que agora incluía as companhias de tabaco, a FDA [Food and Drug Administration], a Organização Mundial da Saúde, a Sociedade de Pesquisa do Câncer, o FBI, a CIA, os meios de comunicação, a Interpol, a I.R.S [agência norte-americana responsável pela coleta de impostos], o Partido Comunista. Um cartum típico mostrava o Tio Sam atingido na face por uma massa de putrescência cancerosa parecida com uma torta: “Da Rússia, Com Amor”.
Quando uma bomba destruiu parcialmente um dos prédios externos do templo, Crump declarou estado de absoluta emergência. Seus seguidores deviam agora dar metade de suas posses mundanas e todo seu tempo ao ACT. Ele declarou guerra total a seus adversários Satânicos. Quando um repórter investigativo, enviado para fazer uma matéria sobre a história do ACT, desapareceu sob circunstâncias misteriosas, o fundador proclamou que a investigação subseqüente “inequívoca e claramente prova uma conspiração de dez anos por parte das agências do Governo atuando com o suporte da mídia para suprimir uma Igreja”.
O Reverendo Crump estava envolvido em incontáveis ações judiciais, movendo ações contra qualquer crítico do ACT. As despesas resultantes foram mais que compensadas pelo constante influxo de dinheiro, com o qual ele comprou imóveis. Agora possuía extensões de terra na Flórida, New Hampshire, Leste do Texas e Montana, onde construiu templos para seus seguidores, que eram estimados em centenas de milhares. Ele ensinou que todos deveriam se fundir em um só organismo através do que chamou fusão biológica. Somente desse modo poderiam eles conter o vírus Venusiano, que estava tomando o resto do mundo. Para favorecer a fusão biológica aconteceram bizarras orgias sexuais em massa e festivais de nudez para romper a resistência residual e deixar vir a radiante luz de Cristo. Ele instituiu as Transmissões Negras, nas quais seus seguidores reuniam-se, em tempo sincronizado, para concentrarem malevolência silenciosa nos inimigos da semana, cujos nomes, endereços e fotos apareciam numa tela. Seus seguidores foram agora obrigados a dar todas as suas posses para o ACT, e foram informados de que deveriam estar prontos para oferecer sangue vital se necessário. Deserção era um crime punido com morte. Havia prática contínua de artes marciais e bestiais urros, grunhidos e rosnaduras podiam ser ouvidos a quilômetros de distância. Qualquer vizinho que reclamasse era colocado na lista de inimigos. Crump vangloriava-se pelo fato de que bastava levantar a mão para despachar seus seguidores como um único homem em missões kamikaze de assassinato e sabotagem. Havia rumores de que ele tinha de prontidão dispositivos nucleares e gás letal suficiente para cobrir toda a Costa Leste. “Ele poderia derrubar o governo deste país como um castelo de cartas”, declarou em tom neutro um oficial de alta patente.
***
Richard Nixon explodiu a imagem Presidencial
Qualquer um que acredite possuir todas as respostas é um lunático.
E lunáticos são perigosos para si e para os outros. A Espaçonave Terra é muito pequena e populosa para acomodar seitas lunáticas. A resposta é muito simples: ao invés de serem isentas de impostos, igrejas deveriam ser taxadas
Ensaio originalmente publicado no livro “Roosevelt After Inauguration” (City Lights Books, 1979 54pp)
não não eu não preciso mais dormir eu sou calígula e incitatus cavalgando em direção a urano eu sou pancho villa stephen dedalus bento de albuquerque santiago raskólnikov afonso henriques de lima barreto rindo de seu próprio fígado no hospício eu sou o personagem omitido o livro não-escrito cortem a cabeça de todos os ídolos deuses e celebridades mergulhem toda essa gente supersticiosa em óleo fervente meu coração está inchado meu coração precisa explodir meu coração é uma bomba de tinta azul é preciso estourar as lâmpadas por pura diversão é preciso morder planetas como se fossem maçãs derreter o corpo é preciso ficar aqui dentro enquanto eles se matam lá fora enquanto eles trocam pâncreas por salários enquanto a nossa dor é anestesiada por raios catódicos é preciso arranhar com chaves de fenda sonhos na parede não é preciso porra nenhuma é preciso um grande cu negro que drene toda a galáxia todas as estrelas como um ralo de pia como o espaço que há entre os seres e entre nossas mentes como um significado que esquecemos mas não se esqueça eu sou uma metáfora a ser decifrada eu eu eu quantos eus sim eu sei e não me desculpo pelo exagero de eus porque afinal não importa se falo de mim de ti de todos nós quem lerá a última linha? quem atirará o primeiro montante de merda? quem ainda precisa de palavras? quem ainda precisa escrever? novos vírus novíssimos meninos cirróticos prontos para o ocaso o acaso o casaco que não nos protege do frio do ponto que nos anula da margem que não pode ser alcançada
cansado do massacre cotidiano saio em busca de contatos telepáticos e flores que possam ser dissolvidas em detergente ou sangue é preciso compensar a falta de luz é preciso exorcizar o mundo da eterna multiplicação do vírus do controle total de cada fração de movimento troca de energia tempo e espaço é preciso desmascarar a coincidência e o acaso é preciso derramar cores nos lagos da imaginação dançar com os fantasmas da infância sonhar com insetos devolver o corpo à terra derrubar ministérios eleger presidentes esquizofrênicos budas mendigos é preciso derrubar hospícios zoológicos farmácias supermercados tribunais delegacias é preciso gerar novos dionísios é preciso avançar no espaço fazer uma ode às coisas simples aos vegetais ao esterco ao ruído dos intestinos cheirar cocaína estudar geografia absorver a umidade dos becos fumar trezentos cigarros o sabor da nicotina calmamente o piano as teclas a cartela de calmante na estante o cérebro congelado a espinha dorsal a infelicidade que não se explica o dia o dia o dia as horas o relógio tudo o que poderia ser dito os policiais na esquina nosso medo nossas medidas é preciso continuar vivo rir do suicídio compreender a doença da filosofia o ridículo o sentido a matemática os logaritmos a heroína é preciso ajudar o cão agonizante a atravessar a ponte.
Dia. Interior de Fábrica. Máquinas trabalhando. Barulho Ensurdecedor. Um funcionário explica o funcionamento da máquina ao colega:
Homens, mulheres e crianças nus usam apenas capacete de motociclista – viseiras negras fechadas.
Pessoas dão-se as mãos e formam um grande círculo. Uma fanfarra se aproxima. Todos dançam. A música se mistura ao vento, ao rumor do mar.
Corta.
Sala de operação. Cirurgiões trabalham concentrados sobre o útero de uma mulher. Retiram um câncer, um teratoma do tamanho de um pequeno melão: dentes cariados, cabelos, unhas e células podres
O enfermeiro dirigindo-se ao cirurgião (em tom submisso e polido):
– Parece continuar crescendo, doutor...
– Sim... e nunca irá parar de crescer!
"A coluna Gente Boa aponta que o campeão mundial de surfe de ondas grandes, Carlos Burle entrou para o maravilhoso mundo das palestras. Cobra R$ 15 mil para falar sobre assuntos como “gerenciamento de risco” e “comprometimento”. A Vale do Rio Doce e a Volkswagen já toparam ouvi-lo. “No fundo, no fundo, eu estimulo as pessoas a descobrirem qual é sua grande onda”, diz."
Introdução: da chegada até o encontro com José Cyro – impressões iniciais
A excitação é grande às 10 horas da manhã. Subir de maneira independente em uma favela que boa parte da população de Jundiaí nem sabe da existência causa essa sensação, ainda mais quando se descobre sobre onde esse distrito impopular foi construído, nas ruínas de um antigo hospital psiquiátrico falido há décadas. A carga simbólica é grande demais, todos os estereótipos, tanto do contato mais pífio com a leitura acadêmica do estudo da mente quanto da lembrança do pior filme de horror, ambientado nas alas das reminiscências de um hospício, discursando superficialmente no poder de resistência das experiências dos mentalmente insanos a sobreviver a anos de esquecimento, vem à tona para aguçar a mente e a percepção. E claro, jamais esquecendo que é uma favela. O termo poder paralelo, tão usado nos últimos anos, dá a entender que pela falta de cuidados do poder vigente, no caso o público, que se trata de um condado estrangeiro na periferia da cidade, uma embaixada da pobreza, da miséria e do descaso. Aliás, como depois de constatado com os próprios moradores, a Prefeitura se diz de mãos atadas em relação ao local, pois o processo de falência do antigo hospital não foi concluído, e como a propriedade privada não pode ser desapropriada antes do término da sentença judicial, a administração pública é incapaz de qualquer incursão sobre esse solo.
Como afirma o jargão, “em Roma, faça como os romanos”. Infelizmente, Roma ainda é mais familiar que o Tamoio. Crianças têm contato com o maior império físico do ocidente em suas aulas de história, aprendem sobre o berço do direito e de como Rômulo e Remo foram amamentados por uma loba. Já sobre o Tamoio, não ouvem nem falar, então os costumes, os hábitos, a estética e a ética do local são um grande mistério. É propriamente por isso, que não leva mais de alguns segundos para notarem que somos “estrangeiros”, e como ainda não encontramos o senhor José Cyro, nosso contato e guia dentro do Tamoio, a excitação e a percepção aguçada aumentam no mesmo grau da vulnerabilidade e do receio que formiga pelo corpo, atiçado pelas lembranças de todas aquelas edições de telejornais mostrando a violência nos morros, claro que é uma impressão generalizada, mas eu sou “estrangeiro”, não conheço as regras da região, não sei quais são as atitudes corretas, como sei qual algum hábito ou vicio que adquiri na minha vida de classe média pode representar alguma ofensa, estou submerso em preconceitos e senso comum, e isso me envergonha. Contenho-me e retraio meus movimentos ao máximo e vou à procura da minha referência.
Descobrimos pelo neto de José Cyro que ele está ao nosso aguardo em um bar logo na saída do antigo hospital, passamos direto por ele e não o vimos. No meio do caminho minha percepção aguçada, agora pela dose de alívio, capta dois vira-latas brigando. É ingenuidade achar isso um fato digno de nota, ou algum exemplo ilustrativo, até porque ninguém mais está prestando atenção, mas é impossível deixar de olhar. Existe uma coreografia intrínseca na disputa. A postura defensiva é primordial, os caninos primeiramente evitam qualquer ofensiva do adversário, a força nas patas traseiras, firmadas no chão, se comportam como fonte de equilíbrio, demonstrando o desejo de não se deixar cair e não se render. Os membros dianteiros estão livres, ágeis e se movem com velocidade, proporcionando uma rápida ofensiva para explorar as brechas da defesa alheia, assim como uma rápida mudança de posição, se isso se fizer necessário. A estratégia de ataque é clara, os cães se empinam à medida que tentam apoiar suas patas dianteiras um sobre o outro, jogando todo seu peso e tendo estabilidade e altura o suficiente para visualizarem a nuca vulnerável, a abocanharem, subjugarem o adversário e postar-se numa posição hierarquicamente maior.
O Último Capítulo
estática de rádio AM...
ruídos da radiação cósmica de fundo...
sombras, Platão!
sim, um mundo de sombras
e mais sombras...
– quais serão suas últimas palavras quando tudo explodir?
no horizonte já é possível ver a grande mancha negra
alastrando-se pelo céu.
– esta é a noite, meu amigo!
a noite em que as peças desse universo-quebra-cabeça
serão novamente embaralhadas.
estaciono na estrada deserta que já não tem mais nome.
o último urubu em vôo suicida mergulha na terra como um míssil
– os pássaros estão mortos.
a Lua explodiu
e deixou os animais completamente confusos.
(e se Baleias fossem Cavalos
e se nós pudéssemos subir no lombo de Deus
e galopar?)
no começo era a Palavra...
e a Palavra será a última representação a desaparecer...
como serão as coisas quando perderem o nome?
veremos então a Verdade no último instante?
como as coisas realmente são?
não tenho medo,
– não tenho medo medo medo...
pela última vez existirá a palavra medo e então...
não tenha medo,
porque a dor será apagada
e não haverá mais
sangue, guerras, beleza, estética...
ou talvez haja Beleza,
mas não testemunhas...
– o poeta foi fundido no núcleo do Sol e há Luz,
Caos, Vida Multiplicável e o Grande Sono
e pela primeira vez tudo pode dormir em Paz.
vou sentir saudades da Música,
vou sentir saudades de um longo trago
e o gosto amargo da manhã na boca...
vou sentir saudades de sentir saudades...
por que esperei por algo que nunca poderia existir?
Existir...
O Verbo ainda existe...
Chef britânico recomenda planta venenosa por engano
Um dos chefs mais famosos da Grã-Bretanha, Antony Worrall Thompson, teve que pedir desculpas depois de recomendar o uso de uma planta venenosa em receitas.
"Uma espécie muito bem organizada socialmente, eles são em duas espécies neofóbicos (medo a alimentação nova) portanto cada vez que se introduz uma alimentação diferente (veneno) o chefe do grupo manda o mais novo comer e fica sendo observado por alguns dias até que o chefe autoriza toda colônia a comer, daí a eficácia do veneno controlado, produtos hoje comercializado em forma de granulado e parafinado, que tem seu efeito ativo em média de 5 dias, tempo suficiente para toda colônia comer. O chumbinho por ter seu efeito quase imediato faz com que o rato ao comer, morra logo em seguida e o chefe da colônia não manda mais ninguém comer, desta forma não é possível controlar a população de ratos."
da sucursal do Inferno,
– Qual a sua justificativa para o ocorrido?
– Na verdade eu estava de saco cheio daquele trabalho. Tinha saído para o almoço, passei pela banca de jornal e vi aquela puta gostosa de salto alto na capa da revista... Como é mesmo o nome dela?
– Kamila Smaili, com K...
– Isso, isso...
– Você estava sob o efeito de alguma droga?
– Não.
– Por que resolveu se masturbar?
– Sei lá. Sei que voltei para a sala – estava com uma ereção filha da puta –, fiz a pesquisa na internet e encontrei meia dúzia de fotos da tal da Smaili. O resto você já sabe...
– Você é casado?
– Não, mas tenho namorada [risos]. E aposto que a essa altura ela está dizendo por aí: “Bem feito! Esse safado tem que se foder mesmo! Cretino!”. Ela nunca vai entender como uma punheta é importante para manter a saúde mental dos homens. Você sabe como são as mulheres...
– Há quanto tempo vocês namoram?
– Três ânus.
– E por que você decidiu quebrar tudo na sala?
– Eu poderia muito bem fazer um discurso contra o capitalismo, o trabalho, todas essas merdas, contra todos esses filhos da puta que enrabam o povo subnutrido, semi-analfabeto, mas... Quer saber? Fodam-se! Eu já estou completamente fodido! Volta lá para tua redação e apresenta essa matéria idiota para o editor [em um tom sarcástico]. Tudo isso é uma grande merda, tudo será esquecido e...
Nesse momento a entrevista é interrompida. Os policiais levam Conrado a tapas para uma das celas da delegacia.
o futuro revelado em palavras suaves por um cientista técnico paranóico – visões proporcionadas pela tempestade – guarda-chuvas na tarde ensolarada – interferência das ondas de Júpiter na freqüência AM – o discurso do demônio – horário nobre da televisão - lampyris noctiluca extinta há mais de um século – orgia de mariposas em letras de néon – parasitas do sistema nervoso – fotografe minha dor enquanto eu vivo – subterrâneo sentimento subterrâneo carne alimento das larvas isto nunca terá um fim libélulas gigantes atravessam o céu da noite a mesma imagem do mesmo sonho eu não me lembro...
Entrevista concedida a George Wickes para a Paris Review, 1961.
Tradução: Hamilton Fernandes
A ARTE DA FICÇÃO nº28
Henry Miller
Em 1934, Henry Miller, então com 42 anos e vivendo em Paris, publicou seu primeiro livro. Em 1961, o livro foi finalmente publicado em sua terra natal, onde instantaneamente tornou-se um “best-seller” e causou grande polêmica. No momento as águas têm sido tão enlameadas pela controvérsia da censura, pornografia e obscenidade que o livro se tornou o foco das atenções.
Mas isso não é novidade. Como D.H. Lawrence, Henry Miller tem sido por muito tempo uma notoriedade, uma lenda. Agraciado pela crítica e por outros artistas, venerado por viajantes, imitado pelos beatniks, ele é, antes de tudo, um herói da cultura – ou um vilão para aqueles que o vêem com uma ameaça à lei e à ordem. Ele poderia até mesmo ser descrito como um herói do povo: vagabundo, profeta, exilado, o garoto do Brooklyn que foi a Paris quando todo mundo estava voltando para casa, o boêmio faminto suportando as más condições do artista criativo na América e, nos últimos anos, o sábio do Big Sur.
Sua vida está escrita em uma série de narrativas picarescas na primeira pessoa do presente histórico: os primeiros anos no Brooklyn,
Em 1939, ele foi à Grécia para visitar Lawrence Durrell; sua breve estada forneceu as bases narrativas para O Colosso de Marússia. Interrompido pela guerra e forçado a voltar à América, ele registrou a odisséia de um ano de duração
Aos 70 anos, Henry Miller se parece mais com um monge budista que “engoliu um canário”. À primeira impressão, ele é um ser humano cômico e afetuoso. Apesar da cabeça calva com um halo de cabelos brancos, não existe nada de velho nele. Sua figura, surpreendentemente frágil, é a de um jovem; todos os seus movimentos e gestos são juvenis.
Sua voz é magicamente cativante, suave, ressonante, mas bastante grave com um grande alcance e variedade de modulações; ele não é tão inconsciente como parece ser a respeito de sua maneira de falar musical. Fala um inglês do Brooklyn modificado, frequentemente pontuado por pausas retóricas como “Don’t you see?” e “You Know?” e diminuindo a voz para uma série de sons “yas, yas... hmm... hmm... yas... hm... hm”. Para se entender melhor e honestamente o homem, deve-se escutar as gravações de sua voz.
A entrevista foi realizada em setembro de 1961, em Londres.
– George Wickes, 1962
Entrevistador
Antes de tudo, você poderia explicar como começa de fato a escrever? Aponta lápis como Hemingway ou algo do tipo para esquentar os motores?
Henry Miller
Não, nada desse tipo. Geralmente começo a trabalhar logo após o café da manhã. Sento-me imediatamente diante da máquina de escrever. Se me dou conta de que não consigo escrever, desisto. Mas não, não há nenhuma regra ou estágios preparatórios.
Existem certos momentos do dia ou certos dias em que você trabalha melhor?
Hoje eu prefiro a manhã, e apenas por duas ou três horas. No começo, eu costumava escrever da meia-noite até o amanhecer, mas isso foi bem no começo. Mesmo depois que eu estava em Paris, achava muito melhor trabalhar pela manhã. Mas nessa época eu costumava escrever por longas horas. Trabalhava de manhã, tirava uma soneca depois do almoço, levantava e escrevia novamente, às vezes até a meia-noite. Nos últimos dez ou quinze anos, percebi que não é necessário trabalhar tanto assim. É, de fato, ruim. Você esvazia o reservatório.
Entrevistador
Você diria que escreve rapidamente? Perlès disse no livro “Meu Amigo Henry Miller” que você é um dos mais rápidos datilógrafos que ele conheceu.
Miller
Sim, muitas pessoas dizem isso. Devo fazer um grande estardalhaço quando datilografo. Acho que escrevo rapidamente. Mas isso varia. Posso escrever rapidamente por um tempo, e então chega o momento em que eu emperro e gasto uma hora em uma página. Mas isso é muito raro, porque quando percebo que estou atolando, pulo uma parte difícil e continuo, e volto a essa parte um outro dia, com a cabeça fresca.
Entrevistador
Quanto tempo você diria que levou para escrever um dos seus primeiros livros?
Miller
Não saberia responder. Eu nunca consegui prever quanto tempo um livro levaria: mesmo agora quando eu planejo algo, não saberia lhe dizer. E de certa maneira é falso acreditar nas datas que um autor diz ter começado e terminado um livro. Não significa que ele estava escrevendo constantemente o livro na época. Pegue Sexus ou toda a Crucificação Encarnada. Acho que comecei a escrevê-la em 1940 e aqui estou eu ainda trabalhando nela. Bem, seria absurdo dizer que eu estive trabalhando nesses livros durante todo esse tempo. Eu não cheguei a nem pensar neles por anos. Então, como posso falar sobre o tempo que demoro para escrever meus livros?
Entrevistador
Sei que você reescreveu Trópico de Câncer diversas vezes e essa obra deu mais trabalho para você do que todas as outras, mas claro, foi o início. Estava pensando se a escrita não se tornou mais fácil para você hoje em dia?
Miller
Essas questões não fazem sentido. O que importa quanto tempo se leva para escrever um livro? Se você perguntasse a Simenon, ele diria com precisão. Acho que ele demora de quatro a sete semanas. Ele sabe que pode contar com isso. Seus livros normalmente têm uma determinada extensão. Além disso, ele é uma dessas raras exceções, um homem que quando diz “Agora vou escrever este livro”, entrega-se completamente ao trabalho. Ele se isola e não pensa e faz nada além disso. Bem, minha vida nunca foi assim. Tenho muitas outras coisas para fazer enquanto estou escrevendo.
Entrevistador
Você edita ou muda muito o que escreve?
Miller
Varia muito. Nunca faço qualquer correção ou revisão durante o processo de escrita. Digamos que escrevo algo de qualquer maneira e então depois que a situação esfria – deixo o texto descansar por um tempo, talvez um ou dois meses – e vejo-o com novos olhos. E então me divirto. Começo a trabalhar [no texto] com o machado. Mas nem sempre é assim. Às vezes, surge quase do jeito que eu queria.
Como é seu processo de revisão?
Miller
Quando estou revisando uso pena e tinta para fazer mudanças, riscar, inserir. O manuscrito fica maravilhoso depois disso, como um Balzac. Então, eu datilografo novamente e nesse processo faço mais mudanças. Prefiro eu mesmo datilografar novamente porque mesmo quando acho que fiz todas as mudanças que queria, o mero trabalho mecânico de tocar as teclas aguça meus pensamentos e eu me encontro revisando enquanto estou fazendo o texto final.
Entrevistador
Quer dizer que existe uma relação entre você e a máquina?
Miller
Sim, de certo modo, a máquina atua como um estímulo; é algo cooperativo.
Entrevistador
Em Os livros da minha vida você diz que a maioria dos escritores e pintores trabalha numa situação desconfortável. Você acha que isso ajuda?
Miller
Sim. Chego a acreditar que a última coisa que um escritor ou qualquer artista pensa é em se sentir confortável enquanto está trabalhando. Talvez o desconforto sirva de ajuda e estímulo. Homens que podem se dar ao luxo de trabalhar em condições melhores, muitas vezes escolhem trabalhar sob condições miseráveis.
Entrevistador
Não são esses desconfortos às vezes psicológicos? Pegue o caso de Dostoievski...
Miller
Eu não sei. Sei que Dostoievski estava sempre em um estado miserável, mas você não pode dizer que ele escolheu desconfortos psicológicos deliberadamente. Não, duvido muito. Não acho que alguém escolhe essas coisas, a menos que seja inconscientemente. Acredito que muitos escritores têm o que muitos chamariam de uma natureza demoníaca. Eles estão sempre com problemas, você sabe, e não somente enquanto estão escrevendo ou porque estão escrevendo, mas em todos os aspectos de suas vidas, com o casamento, amor, negócios, dinheiro, tudo. Está tudo interligado, tudo parte e parcela da mesma coisa. É um aspecto da personalidade criativa. Nem todas as personalidades criativas são assim, mas algumas são.
Entrevistador
Você fala em um de seus livros sobre “o ditado”, de ser quase possuído, de ter algo transbordando de você. Como isso funciona?
Miller
Bem, acontece somente em raros intervalos, esse ditado. Alguém assume o comando e você apenas copia o que está sendo dito. Aconteceu com mais intensidade com a obra sobre D.H. Lawrence, um trabalho que nunca terminei – e isso aconteceu porque eu tive que pensar demais. Veja bem, não sou muito bom pensando. Um escritor não deveria pensar demais. Eu trabalho a partir de algum lugar muito profundo; e quando escrevo, bem, eu não sei exatamente o que vai acontecer. Sei sobre o que eu quero escrever, mas não estou muito preocupado em como dizê-lo. Mas nesse livro eu estava lutando com as idéias; elas tinham que ter alguma forma e significado e outras coisas. Fiquei nele, suponho, uns bons dois anos. Saturei-me dele, fiquei obcecado e não conseguia deixá-lo. Não conseguia nem mesmo dormir. Bem, como eu digo, o ditado assumiu com mais intensidade nesse livro. Aconteceu com o Capricórnio também e com partes de outros livros. Acho que essas passagens se destacam. Não sei se as pessoas reparam ou não.
Entrevistador
São essas as passagens que você chama de cadenzas?
Miller
Sim, eu usei essa expressão. Essas passagens às quais me refiro são tumultuosas, as palavras despencam umas sobre as outras. Eu poderia continuar indefinidamente. É claro que eu penso que essa é a maneira que alguém deveria escrever o tempo todo. Você vê aí toda a diferença, a grande diferença entre o pensamento, o comportamento e a disciplina do Ocidente e do Oriente. Se, digamos, um artista Zen vai fazer algo, ele teve um longo preparo de disciplina e meditação, profundo e quieto pensamento sobre isso, e então nenhum pensamento, silêncio, vazio e assim por diante – talvez por meses, anos. Quando ele começa é como uma iluminação, exatamente o que ele quer – é perfeito. Bem, é dessa forma que eu acredito que a arte deveria ser feita. Mas quem faz assim? Nós levamos vidas que são contrárias à nossa profissão.
Entrevistador
Existe algum condicionamento em particular pelo qual o escritor pode passar, como o esgrimista Zen?
Miller
É claro, mas quem o faz? Quer ele pretenda fazê-lo ou não, entretanto, todo artista disciplina a si mesmo e se condiciona de uma maneira ou de outra. Cada homem tem o seu jeito. Afinal, a maior parte da escrita é feita longe da máquina de escrever, longe da escrivaninha. Eu diria que ocorre nos momentos quietos e silenciosos, enquanto você está caminhando ou fazendo a barba ou jogando, enfim, ou mesmo quando está conversando com quem não está vitalmente interessado. Você está trabalhando, sua mente está trabalhando no problema na parte de trás de sua cabeça. Então, quando você se senta à máquina é apenas uma mera questão de transferir.
Entrevistador
Você disse anteriormente que existe algo dentro de você que assume o controle.
Miller
Sim, claro. Ouça. Quem escreve os grandes livros? Não somos nós, que assinamos nossos nomes. O que é um artista? É um homem que tem antenas, que sabe como sintonizar as correntes que estão na atmosfera, no cosmos; ele meramente tem a facilidade de sintonizar, como era. Quem é original? Tudo que estamos fazendo, tudo que pensamos já existe e somos somente intermediários, isso é tudo, quem utiliza o que está no ar. Por que idéias, por que grandes descobertas científicas muitas vezes ocorrem em diferentes partes do mundo ao mesmo tempo? O mesmo é verdadeiro para os elementos que formam um poema ou uma grande novela ou qualquer obra de arte. Eles já estão no ar, a eles não foi dada uma voz, isso é tudo. Eles precisam do homem, do interpretador para levá-los adiante. Bem, e é verdade também, claro, que alguns homens estão à frente de seu tempo. Mas hoje não creio que é o artista quem está tão à frente de seu tempo como o cientista. O artista está ficando para trás, sua imaginação não está acompanhando os passos do cientista.
Entrevistador
Como você considera o fato de que certos homens são criativos? Angus Wilson diz que o artista escreve por causa de uma espécie de trauma, que usa sua arte como uma forma de terapia para superar suas neuroses. Aldous Huxley, por outro lado, tem uma visão totalmente oposta, e diz que o escritor é predominantemente são, que, se ele tem uma neurose, isto apenas lhe dá vantagens como escritor. Você tem alguma opinião sobre o assunto?
Miller
Eu acho que isso varia de acordo com o escritor. Não acho que você possa afirmar isso para todos os escritores. Um escritor afinal é um homem como os outros; ele pode ser neurótico ou não. Quer dizer, sua neurose, ou seja lá o que for que dizem fazer parte de sua personalidade, não explica sua escrita. Acho que é uma coisa muito mais misteriosa do que isso e eu nem tentaria meter o bedelho neste assunto. Eu disse que o escritor é um homem que tem antenas; se ele realmente soubesse o que foi um dia, seria bastante humilde. Reconheceria a si mesmo como um homem que foi possuído por uma certa faculdade para a qual foi destinado e a usaria a serviço de outros. Ele não tem que se orgulhar disso, seu nome não significa nada, seu ego não é nada, ele é somente um instrumento em uma longa progressão.
Entrevistador
Quando você descobriu que tinha essa faculdade? Quando você começou a escrever?
Miller
Eu devo ter começado enquanto estava trabalhando para a Western Union. Foi certamente quando escrevi o primeiro livro, em qualquer caso. Escrevi também outras coisas menores na época, mas a coisa de verdade aconteceu depois que eu desisti da Western Union – em 1924 – quando decidi que seria um escritor e me entregaria completamente a isso.
Entrevistador
Então isso significa que você começou a escrever dez anos antes do Trópico de Câncer ser impresso.
Miller
Por aí, sim. Entre outras coisas, escrevi duas ou três novelas durante esse período. Tenho certeza de que foram duas antes de escrever Trópico de Câncer.
Entrevistador
Você poderia falar mais sobre esse período?
Miller
Bem, eu falei bastante sobre isso na Crucificação Encarnada: Sexus, Plexus e Nexus são só sobre esse período. Você encontrará ainda mais na última metade de Nexus. Eu falei sobre todas as minhas tribulações durante esse período – minhas condições físicas, minhas dificuldades. Eu trabalhava como um cão e ao mesmo tempo – como eu devo dizer? – estava em um nevoeiro. Eu não sabia o que estava fazendo. Eu não conseguia ver ao que eu estava almejando. Supunha-se que eu estivesse trabalhando em um romance, escrevendo esse grande romance, mas na verdade eu não estava chegando a lugar algum. Às vezes, não escreveria mais do que três ou quatro linhas por dia. Minha esposa chegaria em casa à noite e perguntaria “Então, como está indo?” (eu nunca a deixava ver o que estava na máquina de escrever). E eu diria “ah, está fluindo maravilhosamente”. “Em que parte você está exatamente agora?”. Agora, imagine você, talvez de todas as páginas que era suposto eu ter escrito, talvez eu tivesse escrito apenas três ou quatro, mas eu falaria como se tivesse escrito cem ou cento e cinqüenta páginas. Continuaria falando sobre o que tinha feito, compondo o romance conforme eu falava com ela. E ela ouvia e me encorajava, sabendo perfeitamente bem que eu estava mentindo. No dia seguinte ela voltaria e diria “E sobre aquela parte que você falou outro dia, como está indo?” e era tudo uma grande mentira, entende, uma invenção entre nós dois. Maravilhoso, maravilhoso...
Entrevistador
Quando você começou a conceber esses volumes autobiográficos como um todo?
Miller
Em 1927, quando minha esposa foi para a Europa e eu fui deixado sozinho. Eu tive um emprego por um tempo no Departamento de Parques do Queens. Um dia, ao final do dia, ao invés de ir para casa, fui tomado por essa idéia de planejar o livro da minha vida e fiquei acordado a noite toda o fazendo. Planejei tudo o que eu tinha escrito até a data em quarenta ou cinqüenta páginas datilografadas. Escrevi em notas, no estilo telegráfico. Mas a coisa toda está ali. Todo meu trabalho desde Capricórnio, passando pela Crucificação Encarnada – exceto o Câncer que foi uma coisa do presente imediato – é sobre os sete anos que vivi com essa mulher. Desde a época em que a conheci até quando parti para a Europa. Eu não sabia então quando partiria, mas sabia que mais cedo ou mais tarde iria. Este foi o período crucial da minha vida como escritor, o período em que estava prestes a deixar a América.
Entrevistador
Durrell fala sobre da necessidade do escritor de romper os limites, ir além em sua escrita, de ouvir sua própria voz. Não é esse, na verdade, seu próprio meio de expressão?
Miller
Sim, acho que sim. De qualquer forma, aconteceu comigo com o Trópico de Câncer. Até aquele momento você poderia dizer que eu era um escritor completamente derivativo, influenciado por todo mundo, pegando todas as tonalidades e sombras de cada escritor que eu amava. Eu era um homem literário, você poderia dizer. E eu me tornei um homem anti-literário: cortei o cordão. Eu disse “somente farei o que consigo, expressar o que eu sou” – foi por isso que usei a primeira pessoa, que escrevi sobre mim. Eu decidi escrever a partir do ponto de vista da minha própria experiência, o que eu conheci e senti. E esta foi minha salvação.
Entrevistador
Como eram os seus primeiros romances?
Miller
Imagino que você encontraria, naturalmente vai encontrar, alguns traços da minha pessoa neles. Mas senti ardentemente que deveria ter alguma espécie de estória, uma trama para desenrolar; eu estava mais preocupado então com a forma e a maneira de fazê-lo do que com a coisa vital.
Entrevistador
Isto é o que você quer dizer com abordagem “literária”?
Miller
Sim, algo que está desgastado e é inútil e do qual você deve se livrar. O homem literário existente mim tinha de ser exterminado. Naturalmente você não mata esse “homem”, ele é um elemento vital de você como escritor, e certamente todo artista é fascinado pela técnica. Mas a outra coisa na escrita é você. A questão que eu descobri é que não existe a melhor técnica. Eu nunca senti que deveria ser fiel a qualquer maneira particular de abordagem. Eu tento permanecer aberto e flexível, pronto para mudar com o vento ou com a corrente de pensamento. Esta é minha postura, minha técnica, ser flexível e alerta, usar seja lá o que for que eu ache bom no momento.
Entrevistador
Em “Carta aberta aos surrealistas de todas as partes”, você diz “eu escrevia surrealisticamente na América antes de sequer ouvir a palavra”. O que você quer dizer com surrealismo?
Miller
Quando eu estava vivendo em Paris, nós tínhamos uma expressão, uma bem americana, que de certo modo explica o termo melhor que qualquer outra coisa. Nós costumávamos dizer “Vamos assumir o comando”. Isso significava perder as estribeiras, mergulhar no inconsciente, apenas obedecendo a seus instintos, seguindo os impulsos do coração ou das tripas ou seja lá como você queira chamá-lo. Mas esse é meu modo de colocá-lo, isto não é realmente a doutrina surrealista; isso não convenceria, acho, André Breton. Entretanto, o ponto de vista francês doutrinário não significava muito para mim. Tudo com o que eu me importava era encontrar outros meios de expressão, e acrescentei um, um elevado, mas para ser usado muito judiciosamente. Quando os assim chamados surrealistas empregaram esta técnica, eles fizeram muito deliberadamente, pareceu a mim. Tornou-se ininteligível, não servia a propósito algum. Uma vez que alguém perde sua inteligibilidade, está perdido.
Entrevistador
Seria surrealismo o que você quis dizer com a frase “dentro da vida noturna” [Into the night life, no original]?
Miller
Sim, era aí que estava originalmente o sonho. Os surrealistas fazem uso do sonho e é claro que esse é um aspecto fecundo da experiência. Conscientemente ou inconscientemente, todos os escritores empregam o sonho, mesmo que não sejam surrealistas. A mente desperta, veja, é a menos aproveitável nas artes. No processo da escrita, o escritor está lutando para trazer o que é desconhecido para si mesmo. Para colocar de forma mais simples: aquilo de que alguém está consciente não significa nada, realmente não o leva a lugar algum. Qualquer um consegue fazê-lo com alguma prática, qualquer um pode tornar-se uma espécie de escritor.
Entrevistador
Você já denominou Lewis Carroll de surrealista, e seu nome sugere o tipo de nonsense que você utiliza ocasionalmente...
Miller
Sim, sim, Lewis Carroll é um escritor que amo. Eu daria meu braço direito para ter escrito seus livros, ou para ser capaz de chegar próximo ao que ele fez. Quando terminar meu projeto, se eu continuar escrevendo, amaria escrever o mais puro nonsense.
Entrevistador
E o Dadaísmo? Você alguma vez já se interessou?
Miller
Sim, o Dadaísmo foi ainda mais importante para mim que o surrealismo. O movimento dadaísta foi algo verdadeiramente revolucionário. Foi um esforço deliberado consciente de virar as mesas de pernas para o ar, de mostrar a absoluta insanidade de nossa vida diária, a inutilidade de todos nossos valores. Existiam pessoas magníficas no movimento Dadaísta, e todos eles tinham senso de humor. Era algo para fazê-lo rir, mas também para fazê-lo pensar.
Entrevistador
Parece-me que
Miller
Sem dúvida. Era uma época em que eu me impressionava bastante. Eu estava aberto a tudo que estava acontecendo quando cheguei à Europa. É verdade que algumas coisas eu conheci quando estava na América. Transition chegou à América; Jolas era magnífico em selecionar aqueles estranhos e bizarros escritores dos quais nunca tínhamos ouvido falar. Eu me lembro, por exemplo, de ir à exposição Armory para ver “Nu descendo a escada” de Marcel Duchamp, e muitas outras coisas maravilhosas. Fiquei enfeitiçado, intoxicado. Aquilo era o que eu estava procurando, e me pareceu tão familiar.
Entrevistador
Você sempre foi melhor compreendido e apreciado na Europa do que na América ou na Inglaterra. O que você pensa sobre isso?
Miller
Bem, em primeiro lugar eu não tinha muitas chances de ser compreendido na América porque meus livros não tinham sido publicados lá. À parte isso, apesar de ser cem por cento americano (e eu sei disso cada vez mais todos os dias), ainda assim, relacionava-me melhor com europeus. Eu conseguia falar com eles, expressar meus pensamentos mais facilmente, ser mais rapidamente compreendido. Tinha uma afinidade muito maior com eles do que com americanos.
Entrevistador
No seu livro sobre Patchen você diz que na América o artista nunca será aceito a menos que ele se comprometa. Você ainda pensa da mesma maneira?
Miller
Sim, estou mais convencido do que nunca. Eu sinto que a América é essencialmente contra o artista, que o inimigo da América é o artista, porque ele insiste na individualidade e na criatividade, e isso é, de alguma forma, anti-americano. Eu creio que, de todos os países – nós temos é claro que ver os países comunistas –, a América é o mais mecanizado, robotizado de todos.
Entrevistador
O que você encontrou na Paris dos anos 30 que não poderia ter encontrado na América?
Miller
Uma coisa: suponho que encontrei uma liberdade que nunca encontrei na América. Eu achei o contato com as pessoas muito mais fácil – quer dizer, as pessoas com as quais eu gostava de conversar. Encontrei mais pessoas da minha espécie lá. Acima de tudo eu senti que era tolerado. Eu não pedia para ser compreendido ou aceito. Ser tolerado era o suficiente. Na América, eu nunca me senti assim. Mas a Europa era um novo mundo para mim. Eu supunha que deveria ser bom em qualquer outro lugar – apenas estar em outro mundo, um estrangeiro. Porque toda minha vida, de verdade, e isto é parte da minha psicológica – como devo dizer? – estranheza, eu somente gostava do que era estrangeiro.
Entrevistador
Em outras palavras, se você tivesse ido à Grécia em 1930 e não em 1939, teria encontrado a mesma coisa?
Miller
Não teria encontrado a mesma coisa, mas teria encontrado os meios de auto-expressão, de autoliberação lá. Eu não teria me tornado o tipo de escritor que sou hoje, mas sinto que teria me encontrado. Na América, eu corria o risco de enlouquecer ou de cometer suicídio. Eu me sentia completamente isolado.
Entrevistador
E sobre o Big Sur? Você encontrou um ambiente apropriado lá?
Miller
Oh, não, não havia nada lá, exceto a natureza. Eu estava sozinho, que era o que eu queria. Permaneci lá porque era um ponto isolado. Já tinha aprendido a escrever sem me importar onde estivesse vivendo. Foi uma mudança maravilhosa, o Big Sur. Eu então definitivamente deixei as cidades grandes para trás. Eu já tinha tido o suficiente de vida urbana. Mas nunca escolhi o Big Sur, entende? Fui largado na estrada lá um dia por um amigo. Ele me disse “Vá e procure tal e tal pessoa, e ela lhe hospedará por uma noite ou uma semana. É uma região maravilhosa, acho que você vai gostar”. E foi assim que eu fui parar ali. Nunca havia ouvido falar do Big Sur antes. Eu conhecia o Point Sur porque tinha lido Robinson Jeffers. Li seu Mulheres no Point Sur no Café Rotonde em Paris – nunca me esquecerei.
Entrevistador
Não é surpreendente que você tenha ido para a natureza dessa maneira, já que você sempre foi um homem urbano?
Miller
Bem, veja você, eu tenho uma natureza chinesa. Sabe, na China antiga quando o artista ou o filósofo começava a ficar velho, ele se aposentava no campo. Para viver e meditar em paz.
Entrevistador
Mas no seu caso foi uma espécie de coincidência?
Miller
Completamente. Mas, veja, tudo de significativo na minha vida aconteceu dessa maneira – por puro acaso. É claro que eu não acredito nisso também. Eu acredito que sempre houve um propósito, que estava destinado para ser dessa maneira. A explicação está no meu horóscopo – esta seria a minha resposta franca. Para mim é bastante claro.
Entrevistador
Por que você nunca voltou a viver em Paris?
Miller
Por várias razões. Em primeiro lugar, eu me casei logo depois de chegar ao Big Sur; e então tive filhos; e não tinha dinheiro; e também me apaixonei pelo Big Sur. Eu não tinha desejo algum de retomar a minha vida em Paris, havia terminado. A maioria dos meus amigos foi embora, a guerra havia despedaçado tudo.
Entrevistador
Gertrude Stein diz que viver na França purificou seu inglês porque ela não usava a língua nativa no dia-a-dia, e isso fez dela a estilista que é. Morar em país teve o mesmo efeito em você?
Miller
Não exatamente. Mas eu entendo o que ela quis dizer. É claro que eu falei muito mais inglês lá do que ela. Menos francês, em outras palavras. Eu estava saturado do francês o tempo todo. Ouvir outra língua diariamente aprimora sua própria língua, faz você ficar ciente de sombras e nuances que nunca suspeitou. Além disso, surge um leve esquecimento que lhe deixa ávido para conseguir recapturar certas frases e expressões. Você se torna mais consciente de sua língua.
Entrevistador
Você teve alguma coisa ver com Gertrude Stein e seu grupo?
Miller
Não, nada. Nunca a encontrei, não conhecia ninguém que pertencia ao grupo dela. Mas, poderia dizer, que não sabia nada de nenhum grupo. Eu era sempre um lobo solitário, sempre contra escolas e grupos e seitas e cultos e ‘ismos’ e assim por diante. Conheci alguns surrealistas, mas nunca fui membro do grupo surrealista ou de qualquer outro grupo.
Entrevistador
Você conheceu algum escritor norte-americano em Paris?
Entrevistador
Conheci Walter Lowenfels, Samuel Putnam, Michael Fraenkel. Sherwood Anderson, Dos Passos, Steinbeck e Saroyan conheci depois na América. Eu os encontrei poucas vezes. Nunca tive uma conexão de verdade com eles. De todos os escritores americanos que conheci , Sherwood Anderson continua sendo o que eu mais gostei. Dos Passos era um camarada afetuoso, mas Sherwood Anderson – bem, eu tinha me apaixonado por sua obra, seu estilo, sua linguagem, desde o começo. E gostei dele como ser humano – embora nós discordássemos em muitos pontos, principalmente sobre a América. Ele amava a América, conhecia-a intimamente, ele amava o povo e tudo sobre a América, e eu era o contrário. Mas adorava o que ele tinha a dizer sobre os Estados Unidos.
Entrevistador
Você conheceu muitos escritores ingleses? Teve uma amizade de longa data com Durrell e Powys, não teve?
Miller
Durrell, com certeza, mas então eu dificilmente pensava nele como um escritor inglês. Eu o acho completamente anti-Britânico. John Cowper Powys, com certeza, teve uma influência tremenda sobre mim; mas na época não o conhecia, nunca o cultivava. Eu não ousaria! Eu era um anão e ele, um gigante. Ele era meu deus, meu mentor, meu ídolo. Eu cruzei com ele quando tinha meus vinte e poucos anos. Ele costumava dar palestras em Labor temples
Entrevistador
Você conheceu Orwell nessa época também?
Miller
Orwell encontrei apenas duas ou três vezes, em suas visitas a Paris. Eu não o chamaria de amigo, apenas um conhecido passageiro. Mas eu estava louco pelo seu livro “Down and Out in Paris and London”; é um clássico. Para mim é ainda o seu melhor livro. Embora ele fosse um cara legal à sua maneira, Orwell, no fim eu o achei estúpido. Ele era como muitos ingleses, um idealista, e, pareceu-me, um idealista tolo. Um homem de princípios, como dizem. Homens de princípios me causam tédio.
Entrevistador
Você não vê muita utilidade para política?
Miller
Eu considero a política um mundo totalmente imundo, podre. Não chegamos a lugar algum através da política. Ela corrompe tudo.
Entrevistador
Mesmo o tipo de idealismo político de Orwell?
Miller
Justamente este! Falta senso de realidade aos idealistas na política. E um político tem que ser um realista acima de tudo. Estas pessoas com ideais e princípios, estão todas desnorteadas, na minha opinião. Deve-se ser um tolo, um pouco assassino, para ser um político; preparado e desejoso de ver as pessoas serem sacrificadas, assassinadas, por causa de uma idéia, seja ela boa ou má. Quer dizer, estes são os políticos que florescem.
Entrevistador
E sobre os autores do passado que particularmente atraíram você? Você fez estudos de Balzac, Rimbaud e Lawrence? Você diria que existe um tipo particular de escritor que lhe atrai?
Miller
É difícil dizer, os escritores que amo são tão diversos. São pessoas que são mais que escritores. Eles têm essa qualidade X misteriosa que é metafísica, mística e outras coisas – eu não sei qual termo usar – esse pequeno algo a mais além dos confins da literatura. Veja bem, as pessoas lêem para se distrair, para passar o tempo, ou para se instruir. Eu nunca li para passar o tempo, para me torna estático. Estou sempre procurando o autor que me faça sair de mim.
Entrevistador
Você poderia dizer por que nunca terminou seu livro sobre D.H. Lawrence?
Miller
Sim, é simples. Quanto mais eu prosseguia com o livro, menos eu entendia o que estava fazendo. Eu me encontrei em um monte de contradições. Descobri que não conhecia de verdade quem Lawrence era, eu não conseguia situá-lo, identificá-lo. Fiquei completamente confuso. Eu tinha me colocado em uma confusão e não conseguia sair. Então abandonei o trabalho.
Entrevistador
Entretanto, você não teve esse problema com Rimbaud?
Miller
Não, estranhamente não. Ele é mais um enigma como personalidade. Mas não tive que me debater tanto com as idéias no livro sobre Rimbaud. Lawrence era um homem inteiramente de idéias, e ele pendurava sua literatura nas prateleiras de suas idéias.
Entrevistador
Você não necessariamente concorda com as idéias de Lawrence, não é?
Miller
Não, não totalmente, mas eu realmente admiro sua busca, sua indagação, sua luta. E há muitas coisas em Lawrence com as quais eu concordo. Por outro lado, há muitas coisas que eu rio sobre Lawrence, coisas que parecem absurdas e estúpidas, tolas. Tenho uma perspectiva melhor dele hoje, mas não acho mais importante dizer qualquer coisa sobre ele. Na época ele significou algo para mim, eu estava sob o seu domínio.
Entrevistador
Bem, agora, eu suponho que devemos entrar na questão da pornografia e obscenidade. Espero que você não se importe. Afinal, você é considerado uma autoridade no assunto. Você disse em algum lugar, “Eu sou pela obscenidade e contra a pornografia”?
Miller
Bem, é simples. A obscenidade deveria ser direta, sem rodeios, e a pornografia deveria ser indireta. Eu acredito que a verdade, trazê-la fria, chocante se necessário, não a disfarça [obscenidade]. Em outras palavras, a obscenidade é um processo de limpeza, ao passo que a pornografia somente acrescenta à escuridão.
Entrevistador
Limpeza em que sentido?
Miller
Toda vez que um tabu é quebrado, algo bom acontece, algo vitalizador.
Entrevistador
Todos os tabus são ruins?
Miller
Não entre povos primitivos. Existe uma razão para o tabu na vida primitiva, mas não em nossa vida, não em comunidades civilizadas. Aí o tabu é perigoso e doentio. Veja, pessoas civilizadas não vivem de acordo com códigos morais ou princípios de qualquer espécie. Nós falamos sobre eles, fingimos acreditar neles, mas ninguém acredita neles. Ninguém pratica essas regras, elas não têm lugar em nossas vidas. Tabus são afinal somente ressacas, o produto de mentes doentias, digamos, de pessoas medonhas que não tiveram a coragem de viver e que sob a aparência externa da moralidade e da religião impuseram essas coisas a nós. Eu vejo o mundo, o mundo civilizado, como amplamente irreligioso. A religião em vigor entre pessoas civilizadas é sempre falsa e hipócrita, totalmente o oposto daquilo que os introdutores da religião queriam dizer.
Entrevistador
Ainda assim, você tem sido considerado um homem bastante religioso.
Miller
Sim, mas sem aderir a nenhuma religião. O que isso significa? Significa simplesmente ter uma reverência pela vida, estar do lado da vida e não da morte. Mais uma vez, a palavra “civilização”, em minha mente, está atrelada à morte. Quando uso a palavra, vejo civilização como algo paralítico, retrógrado, embrutecedor. Para mim sempre foi assim. Não acredito nas épocas de ouro, entende? Quer dizer, houve épocas douradas para pouquíssimas pessoas, mas as massas sempre estiveram na miséria – eram supersticiosas, ignorantes, foram oprimidas, estranguladas pela Igreja e o Estado. Ainda acredito em Splenger, está tudo ali. Ele faz a antítese entre cultura e civilização. A civilização é a arteriosclerose da civilização.
Entrevistador
Durrell no artigo que escreveu sobre você para a Horizon dez anos atrás fala da obscenidade como técnica. Você considera a obscenidade como uma técnica?
Miller
Sei o que ele quis dizer com isso. Ele quis dizer uma técnica de choque. Bem, eu devo usá-la desta maneira inconscientemente, mas eu nunca a usei deliberadamente. Eu empreguei a obscenidade tão naturalmente como empregaria qualquer outra forma de falar. Era como respirar, era parte do meu ritmo. Existiam momentos em que era obsceno, e existiam outros. Eu não acho a obscenidade o elemento mais importante de qualquer maneira. Mas é um muito importante, e não pode ser negado, omitido ou suprimido.
Entrevistador
Mas pode ser também exagerado...
Miller
Pode ser, mas qual o mal se fosse? Por que estamos tão preocupados, o que existe na obscenidade para ser temido? Palavras, palavras – o que existe nelas para ser temido? Ou nas idéias? Supondo-se que elas são repulsivas, somos nós covardes? Não encaramos nós todo o tipo de coisas, não estivemos diversas vezes em tempos de destruição com a guerra, doença, pestilência, fome? Com o que estamos ameaçados pelo uso exagerado da obscenidade? Onde está o perigo?
Entrevistador
Você comentou que a obscenidade é branda em comparação a todo tipo de violência que é muito comum em edições americanas.
Miller
Sim, toda essa escrita perversa e sádica é detestável para mim. Eu sempre disse que minha escrita é saudável porque é jovial e natural. Eu nunca expressei nada que as pessoas não estão dizendo e fazendo o tempo todo. De onde eu tirei? Não foi da cartola. Está tudo ao nosso redor, nós a respiramos todos os dias. As pessoas simplesmente se recusam
Entrevistador
Bem, mesmo em Chaucer você não encontrará todas as palavras que encontra
Miller
Mas você certamente encontrará bastante alegria, naturalismo saudável, muita liberdade de expressão.
Entrevistador
O que você acha do comentário que Durrell fez em sua entrevista para a Paris Review? Ele disse que em retrospecto ele acha algumas partes do “Black Book” [novela de Durrell] muito obscenas hoje.
Miller
Mesmo? Deixe-me dizer que essas partes são as que eu mais gosto. Achei-as maravilhosas quando as li pela primeira vez, e ainda acho hoje
Entrevistador
Por que você escreveu tanto sobre sexo? O que o sexo significa para você? Significa algo especial?
Miller
É difícil responder. Sabe, eu acho que escrevi tanto daquilo que meus críticos hostis chamam “disparate” – que é nonsense metafísico – como escrevi sobre sexo. Apenas que eles preferem olhar para o sexo. Não, eu não tenho como responder a essa pergunta, exceto dizer que o sexo tem um grande papel na minha vida. Eu levei uma rica vida sexual, e não vejo como isso poderia ser deixado de fora.
Entrevistador
Teve algo a ver com o rompimento com a vida que você estava levando
Miller
Não, acho que não. Mas percebe-se na França, depois de se viver na América, que o sexo impregna o ar. Está à sua volta, como um fluido. Eu não duvido que os americanos entrem em suas relações sexuais tão fortemente, profundamente, variadamente como qualquer outra pessoa, mas não está na atmosfera à sua volta, entretanto. Além disso, na França a mulher tem um papel mais importante na vida dos homens. Ela tem uma posição melhor lá, é levada em consideração, conversam com ela como se fosse uma pessoa, não como apenas uma esposa ou uma dona-de-casa e outras coisas. Além de que os franceses preferem estar na companhia de mulheres. Na Inglaterra e na América, os homens parecem gostar de ficar entre eles.
Entrevistador
Apesar de que sua vida na Villa Seurat era bem masculina.
Miller
Com certeza, mas sempre havia mulheres. Eu tinha muitos amigos, é verdade, mas tive muitas amizades em toda minha vida. É outra coisa em meu horóscopo: sou um homem destinado a fazer amigos. Este é provavelmente o maior fator em minha vida, e talvez eu deva dizer alguma coisa sobre isso. Quando comecei a escrever, percebi o quanto estava em dívida com os outros. A vida inteira fui ajudado por amigos e estranhos também. Para que eu precisava de dinheiro, quando tinha amigos? O que alguém quer quando tem amigos? Eu tive muitos amigos, grandes amigos, amigos de uma vida inteira. E agora os estou perdendo para a morte.
Entrevistador
Deixemos o sexo e falemos sobre a pintura. Você sentiu essa ânsia de escrever por volta da metade dos anos 20; você começou a pintar na mesma época?
Miller
Logo após. Acho que era 1927 ou 28 quando comecei. Mas não com a mesma seriedade, naturalmente. O desejo de escrever era uma coisa grande em minha vida, enorme. Se eu não tivesse começado a escrever tão tarde – estava com 33 quando comecei definitivamente; havia colocado a escrita muito acima de mim, eu não pensava ter a habilidade, eu não acreditava em mim como um escritor, um artista. Veja, eu não ousava pensar que pudesse ser tal pessoa. Bem, eu não tomei a pintura dessa maneira. Descobri que existia um outro lado meu que poderia ser usado. Deu-me prazer pintar, era uma recreação, era um descanso de outras coisas.
Entrevistador
É ainda uma espécie de jogo para você?
Miller
Oh sim, nada mais.
Entrevistador
Você não encontra um tipo fundamental de conexão entre as artes?
Miller
Absolutamente. Se você é criativo de um jeito, será de outro. Originalmente, sabe, a música era a grande coisa comigo. Toquei piano, esperava ser um grande pianista, mas não tinha talento para isso. Ainda assim, estava saturado de música. Poderia mesmo dizer que a música significa mais para mim do que a literatura e a pintura. Está lá na parte de trás da minha cabeça o tempo todo.
Entrevistador
Você foi muito interessado em jazz por um tempo.
Miller
Fui. Não me interesso muito hoje. Acho o jazz completamente vazio agora. Está muito limitado. Assim como deploro o que aconteceu com os filmes, deploro o destino do jazz. Ele torna-se cada vez mais automático, não evolui o suficiente, não enriquece. É como tomar apenas um aperitivo. E Eu preciso de vinho, cerveja, champanhe e conhaque também.
Entrevistador
Você escreveu vários ensaios nos anos 30 sobre a arte cinematográfica. Você já teve a chance de praticar essa arte?
Miller
Não, mas ainda espero encontrar a pessoa que me dará a chance. O que eu mais deploro é que a mídia do filme nunca foi explorada apropriadamente. É um meio de comunicação poético com todos os tipos de possibilidades. Apenas pense no elemento do sonho e da fantasia. Mas com que freqüência o alcançamos? Um pouco aqui e ali, um leve toque e ficamos embasbacados. E pense em todos os dispositivos técnicos ao seu dispor. Mas, meu Deus, nós nem mesmo começamos a usá-los. Nós poderíamos ter maravilhas, milagres, alegria e beleza ilimitadas. E o que nós temos? Merda pura. O filme é o mais livre de todos os meios de comunicação, você pode fazer maravilhas com o meio. Na verdade eu ficaria feliz com o dia em que o filme substituísse a literatura, quando não houvesse mais a necessidade de ler. Você recorda rostos e gestos em filmes de uma maneira que não consegue quando lê um livro. Se o filme consegue te prender dessa maneira, você se entrega totalmente. Mesmo quando você ouve música, não é a mesma coisa. Você vai a uma sala de concertos, a atmosfera é ruim, as pessoas estão bocejando, ou dormindo, a programação é muito longa e não tem coisas das quais você gosta e assim por diante. Você sabe o que eu quero dizer. Mas no cinema, sentado lá no escuro, as imagens indo e vindo, é como uma chuva de meteoritos lhe acertando.
Entrevistador
E sobre uma versão cinematográfica para Trópico de Câncer?
Miller
Existem rumores. Foram feitas ofertas, mas eu não consigo ver como alguém poderia fazer um filme daquele livro.
Entrevistador
Gostaria de você mesmo fazê-lo?
Miller
Não, eu não faria porque acho quase impossível fazer um filme do livro. Eu não vejo a estória ali. E depende muito da linguagem. Talvez alguém possa transformar essa linguagem tropical em japonês ou turco. Não consigo vê-lo sendo interpretado em Inglês, não acha? O filme é definitivamente um meio dramático e plástico, de qualquer forma, uma coisa de imagens.
Entrevistador
Ano passado, você foi um dos juízes do Festival de Cannes, não foi?
Miller
Sim, apesar de ser, mais propriamente, uma escolha dúbia. Os franceses provavelmente o fizeram por apreciarem meu trabalho. É claro que eles sabiam que eu era cineasta, mas quando um repórter me perguntou se eu ainda gosto de filmes, eu tive de dizer que dificilmente assisto a filmes. Nos últimos quinze anos vi poucos bons filmes. Mas sim, ainda sou um cineasta de coração.
Entrevistador
Você escreveu uma peça de teatro. Como se sente em relação a esse meio?
Miller
É um meio com o qual sempre desejei lidar, mas nunca tive coragem. Em Nexus, quando levo aquela vida subterrânea e estou lutando para escrever, existe uma descrição, uma bastante vívida, de como tentei escrever uma peça de teatro sobre a vida que estávamos então levando. Eu nunca a concluí. Acho que cheguei no primeiro ato. Eu tinha pregado com uma tachinha um plano elaborado da peça na parede, e poderia falar sobre ela maravilhosamente, mas não conseguia trazê-la à tona. A peça que escrevi saiu do cartola, por assim dizer. Eu estava num estado mental peculiar: não tinha nada para fazer, nenhum lugar para ir, pouco para comer, todo mundo estava longe, e então eu disse ‘por que não sentar e tentar?’. Não tinha idéia o que estava fazendo quando comecei, as palavras apenas vieram, não lutei com elas. Não houve muito esforço envolvido.
Entrevistador
Do que se trata?
Miller
Sobre tudo e nada. Eu não acho que importa sobre o que é a peça, realmente. É uma espécie de farsa, uma representação burlesca com elementos surrealistas. E há música, música incidental, que vem da jukebox e de acima da atmosfera. Eu não acho que tenha grande importância. O máximo que posso dizer sobre ela é que você não irá dormir se assisti-la.
Entrevistador
Você pensa em escrever mais peças?
Miller
Espero que sim, sim. A próxima será uma tragédia, ou uma comédia para fazer chorar.
Entrevistador
O que mais você está escrevendo no momento?
Miller
Não estou escrevendo mais nada.
Entrevistador
Você não vai dar continuidade com o volume dois de Nexus?
Miller
Sim, claro, isso é o que tenho de fazer. Mas ainda não o comecei. Fiz várias tentativas, mas desisti.
Entrevistador
Você tem que fazê-lo?
Miller
Sim, de certo modo, tenho que terminar meu projeto, o projeto que elaborei em 1927. Este é o fim dele. Eu penso que parte do meu atraso em finalizá-lo é que não quero dar um fim à obra. Significa que vou me virar, pegar uma outra direção, descobrir um novo campo. Porque não quero mais escrever sobre experiências pessoais. Escrevi todos esses livros autobiográficos não porque pensava ser uma pessoa muito importante – isto vai fazer você rir – mas porque pensei, quando comecei, que estava contando a estória mais trágica de sofrimento que qualquer homem já suportou. Conforme prossegui, percebi que eu era apenas um amador em relação ao sofrimento. Certamente tive um bom bocado dele, mas não penso mais que foi tão terrível assim. Foi por isso que chamei a trilogia de A Crucificação Encarnada. Descobri que esse sofrimento era bom para mim, abria o caminho para uma vida jovial, através da aceitação do sofrimento. Quando um homem é crucificado, quando morre para si, seu coração se abre como uma flor. É claro que você não morre, ninguém morre, a morte não existe, você apenas alcança um nível de visão, um novo reino da consciência, um novo mundo desconhecido. Assim como você não sabe de onde veio, também não sabe para onde está indo. Mas existe algo lá, antes e depois, eu acredito firmemente.
Entrevistador
Como é ser um best-seller após ter suportado as precárias condições do artista criativo todos esses anos?
Miller
Eu não sinto nada em relação a isso. É irreal para mim, a coisa toda. Eu não me vejo envolvido. De fato, eu mais desgosto do que qualquer outra coisa. Não me dá prazer. Tudo que eu vejo é mais interrupção na minha vida, mais intrusões, mais nonsense. As pessoas estão preocupadas com algo que já não me preocupa. Aquele livro não significa mais nada para mim. As pessoas pensam que porque elas estão analisando-o, eu também o estou. Eles pensam que é uma coisa grandiosa para mim que afinal fui aceito. Bem, sinto que fui aceito muito antes; no mínimo por aqueles por quem eu me importava em ser aceito. Ser aceito pela multidão não significa nada para mim. De fato, é bastante doloroso. Porque estou sendo aceito pelas razões erradas. É questão de sensacionalismo, não significa que estou sendo apreciado pelo meu verdadeiro valor.
Entrevistador
Mas é parte do reconhecimento que você sempre soube que viria.
Miller
Sim, claro. Mas então, você não vê?, o único reconhecimento real vem daqueles que estão no mesmo nível que você. Isso é a única coisa que importa, e eu tive isso. Tive isso por anos.
Entrevistador
Qual dos seus livros você considera o melhor?
Miller
Eu sempre digo O Colosso de Marússia.
Entrevistador
A maior parte dos críticos considera Câncer seu grande livro.
Miller
Bem, relendo Câncer eu o achei muito melhor do que tinha pensado. Eu gostei. Fiquei maravilhado, na verdade. Não olhei para ele durante anos, sabe. Eu acho um bom livro com qualidades duradouras. Mas Colosso foi escrito a partir de outro nível do meu ser. O que eu gosto nele é ser um livro jovial, que expressa e dá alegria.
Entrevistador
O que aconteceu com Draco and the Ecliptic, que você anunciou muito anos atrás?
Miller
Nada. Foi esquecido, apesar de ser sempre possível que um dia eu escreva esse livro. Minha idéia era escrever um livro fino, explicando o que eu estive tentando fazer ao escrever todos esses livros sobre a minha vida. Em outras palavras, para esquecer o que eu escrevi e tentar novamente explicar o que eu esperava fazer. Dessa forma, talvez dar a significância da obra a partir do ponto de vista do autor. O ponto de vista do autor é somente um de muitos, e sua idéia da significância de seu próprio trabalho é perdido na confusão de outras vozes. Será que ele conhece seu próprio trabalho tão bem quanto imagina? Prefiro pensar que não. Prefiro pensar que ele é um médium que, quando sai do transe, está maravilhado com o que disse e fez.
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Para ler o texto em inglês, acesse: